Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

terça-feira, 8 de abril de 2008

Translineação

Foto: André Kertész. (Hungria, 1894-1985). Auto-retrato com gato negro, Paris 1927.

Quando sai da redoma das brincadeiras, traz grudado aos cabelos um cheiro de pêlo de gato empoeirado no mundo.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Fazendo caminhos

Foto: Sergio Larrain (Chile, 1931). Valparaíso, Chile, 1957.

Sou alguém que segue uma menina.


Sou uma menina:

que me cegue.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Convalescença

Foto: Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002). Sábana caída, década de 1940.

Quando a garganta trancava em dor (criança, a mãe lhe amarrava um lenço com álcool e cânfora forte no pescoço), os olhos atravessavam a janela. A janela que insistia em abrir seca e ferruginosa, de cara pro muro descascado, guardado na casa de esquina: anos, metros, minutos, quarteirões atrás, onde três pequenos vasos lhe engrandavam a visão dos miolos roxo-escuros dos amores-perfeitos, tão vivamente amarelos. Na fraqueza que sentia, o retumbar dos resquícios móveis e sincrônicos da cor amarela que lhe ficavam nas pálpebras fechadas era o provocador do enjôo. Sentia os movimentos dos órgãos e sem se dar conta, vinha o seu esforço em conter, em segurar o pouco do alimento ingerido à força. Depois a languidez suada do fim da febre, a suave sensação de não pertencer mais a nenhum plano definido, claro, fixo. O muro com os vasos era tantos muros e as tonturas de Lídia tantas voltas de seu corpo, tatos indeléveis das idas e vindas da enfermidade desde a infância. A solidão crua, sem rodeios que tinha agora, foi revelada pouco a pouco pela cama de lençóis brancos, pelo cheiro de remédio constante, pelo afago suspiroso dos próximos enquanto dormia arfante e sôfrega, nos sorrisos apressados de preocupação distante, no leve beijo na testa recebido do marido, e se tornou óbvia no instante de um raio, quando tirou os adornos do silêncio do quarto, e escutou o fado chorado em ais, lamentando o destino dos que não nasceram para viver o amor.

terça-feira, 18 de março de 2008

Diálogo Matutino

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). El sueño.

- Sonhei que tropeçava.
- Onde?
- Nos meus próprios pés. Corria e tropeçava. Corria e tropeçava.
- E depois?
- Acordei soluçando.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Jonas na tarde

Foto: Walker Evans (Estados Unidos, 1903-1975). Kitchen Wall in Bud Fields House, Hale County, Alabama 1936.
Leia o conto inteiro na revista Germina: http://www.germinaliteratura.com.br/2008/priscila_miraz.htm

A mulher pagou os cinco cruzeiros pela galinha depenada e foi com ela balançando ao lado do corpo, descendo a rua de cenho fechado, envergando um vestido desbotado e uma tristeza recurva. Jonas menino ficou ali no calor da rua vazia querendo descansar. Só não sabia que era mais das amarguras do que da caminhada diária da venda das aves que criava. Via lá no fundo dos olhos a camisa de brancura que o pai usava quando ia ficar fora por muito tempo. No fundo dos olhos fechados, a camisa branca do pai luzia de luz emprestada, porque o pai era fosco. Queria saber de onde vinha a luz que o pai refletia. Achava mesmo que ele tinha pele esverdeada. E tinha raiva porque esse pai voltava e o expulsava do lugar que era dele. Mas um dia ele ia ter o tamanho de homem e ia ser forte.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Augurio

Foto: André Kertész (Hungria, 1894-1985). Martinique, 1 enero 1972.

Estava já tirando a coberta da cama pra se deitar quando sentiu alguma falta. Tinha passado o dia com suas coisas sem mais o que, sem espera, sem promessa. Sem. Continuou movendo as mãos nos afazeres, mas o cenho franzido dizia de seu estranhamento. Tanto tempo de pensamento preso e agora uma soltura branda, lilás. Foi assim que soube que sua solidão era só sua novamente.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Invisível

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).

Todos os desenhos das crianças da classe foram expostos no corredor da escola. Em cartolinas grandes. Eram árvores com maçãs e cerquinhas. Arco-íris em quase todos. O desenho do seu menino era colorido e disforme. Manchas de cores e tamanhos diferentes. Não reconhecia ali nenhuma forma do que fosse, por mais que olhasse. E ele estava ali, ao lado dela, esperando seu comentário. Ela fez foi uma pergunta: O que é isso? E ele, muito direto e impaciente com as incompreenções, como de costume: ora, são os poderes das coisas!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Planos

Foto: Martín Chambi (Peru, 1891-1973). Muro de las cinco ventanas, Wiñay Wayna, 1941.

Quebrando um silêncio de dois quarteirões de sol quente, o menino que andava alguns passos a frente se volta com a pergunta: Você tem certeza de que isso é vida real?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Desvaneio

Foto: Ralf Gibson (Estados Unidos, 1939). Shadow and man with cane.

Na sensação pouco reparada de distorção das sensibilidades imposta ao corpo e ao pensamento que acontece com certa freqüência em caminho feito diariamente, trocando os passos sem acompanhamento e sem importância, fazendo mentalmente as contas do mês, passou pelo velho cavado no centro de sua magreza, carregado das sacolas de lona suja. Foi arrancada da distância e jogada no meio da rua pela voz assobiada entre os dentes sobrantes: meu coração sente falta de alguma pessoa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Nota

Foto: Mariana Yapolsky (Estados Unidos, 1925-2002). Osario. Dangú, Hidalgo.

Em um gravador esquecido no fundo da gaveta encontrei a voz que um dia será a minha. Minha voz envelhecida no gravador que, de quebrado, foi vidente. O vislumbre da Lívia: entre a sombra da lâmpada da Praça da Bandeira e os cabelos que cresciam, meu rosto de mulher de quarenta anos.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Prévia

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem título, 1949.

Cinco da manhã. Só ali, só aquele bar aberto. Levantou da mesa vermelha com distração. Sentiu uma mão alheia escorrendo pelo braço. Soltando lenta e longe a sua carne. Caía o sono com força. Atravessou as poucas mesas da calçada e o corredor que seguia com o balcão e as pessoas sentadas. Todos olhavam a rosa no cabelo dela. Único indicativo do carnaval. Era véspera. Lá no canto escuro da lâmpada queimada tinha o buraco que era entrada do banheiro. Espiou por baixo da porta. Tinha alguém ali. Alguém que não saía. Então bateu, sem jeito. Saiu a moça de blusa azul. No espaço pequeno passou se apertando contra a parede sem ver a outra. O chão ao redor do sanitário estava alagado. Levantou acima dos joelhos a barra do vestido. Agachada via pelo meio das pernas a urina que expelia e sentiu vertigem. Tudo vertia água. Tudo podia se desfazer em água. Depois abriu a porta e deu com a moça de azul ainda ali. Enxugando o rosto com as tolhas de papel. Não da água da pia. Ela chorava. E insistia em enxugar. E chorava. Sem perceber, a que saía parou pra olhar aquele trabalho de Sísifo. Parou bem atrás dela. No espelho surgiu uma rosa branca na cabeça da que chorava. Então ela parou de enxugar, e os olhos cheios fitaram complacentes a própria cabeça onde surgiu inexplicável, uma rosa branca. Elas riram antes de sair dali.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Interior 5

Foto: Priscila Miraz. Encontro de Bandeiras. Folia de Reis, Assis, 2008.

O ar é cortado pelas fitas coloridas balançantes das violas. Ói o respeito, minino! E o menino cansado beija outra Bandeira. Qui deus ti bençoa, fiu, ri a Alferes da Bandeira acarinhando a cabeça da criança. As Companhias se apresentam e contam de um deserto palestino os lamentos, prolongados pela terceira voz, de um sertão americano. São muitos e variados nas cores, os três descendentes de Noé. E o dia é todo pedidos e agradecimentos. Os palhaços transitam livres pelas máscaras e pela pinga. Dançam batendo os pés e lutam com as espadas de madeira chacoalhando os embornais, tilintando as moedas. Moedinha pro paiaço, madrinha! As moedas rodam pelo chão e as botinas pisam duro, empurram, ganham e perdem na brincadeira. Ói madrinha, diz só o nome qué preu gravá qui no coração. E andando entre eles, que posam tão prontamente pra câmera, que se ritmam pelos bandolins, violas, violinos, sanfonas, pandeiros, fitas, imagens, bordados, flores de cores intensas e de plástico, que bebem e abençoam, descansam nas sombras das árvores o cansaço da festa que é trabalho e devoção, se entende que a melancolia e o lamento podem ser de uma particular alegria.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Chuvas

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). Río Cuja.

A casa escura da chuva é preta e branca. É uma das fotos da parede. Pequenas linhas de luz alaranjada vazam e denunciam a tarde caindo das nuvens cinzas. O sofá tem a marca funda do corpo e está quente, mas vazio. Molhado de chuva o gato lambe as patas depois de tremer as gotas brilhantes. Ele ignora o que se aproxima e olha o vazio, continuando na soleira da porta entre aberta. Entre aberto estava o mundo. Só um olho de gato vê o denso vazio de um mundo que se insinua.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

...

Foto: Josef Sudek (República Checa, 1896-1976). Na catedral de San Guido, 1924-1928.


Férias em Pasárgada.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Interior 4: Cafe de Chinitas

Foto: Tomás Camarillo (Espanha, 1879-1954). Moratilla de los Meleros - Una calle.

A dona do xerox de uma esquina da avenida Dom Antônio viu dançar flamenco no Cafe de Chinitas. Parou com o livro aberto nas mãos, depois de xerocar o que pedi, sempre discutindo com a empregada. Repetia sem parar uns versos que sabia e queria achar: “Y yo que la llevé al rio/ creyendo que era mozuela” – é dele, sabe. Declamava teatral, chacoalhando insistente as unhas pintadas de dourado. O chuvisco já era chuva. Eu sem guarda-chuva. E ela satisfeita consigo mesma quase desfolhando o livro: Viu logo de qual poema eu vou gostar? É um belo Cafe, comprendeu? Sabe porque a Doña Juana enlouqueceu, lá no castelo de Valladolid? E a chuva entrava até as prateleiras de barbantes coloridos. Tentava pagar as cópias. Cercada. Acuada, ouvi pela terceira vez sobre o Cafe. Aí, sem tempo de brecar, disse que ela estava enganada, que o Cafe de Chinitas era verde e não tinha um único palco, mas vários pequenos ao redor do pátio coberto. Que foi na primeira mesa redonda logo em frente ao palco da esquerda, ao lado da coluna que iniciava os arcos e a fila de espelhos, que me sentei, bati o copo e os saltos, me defendi a cuchillo do descaramento do gitano pincho moruno e engrossei o coro das salerosas. Ela duvidosa de si mesma era ainda insistente. Mas a chuva diminuía a olhos vistos depois do meu Abre-te Sésamo, e com algum custo consegui pagar, já quando a conversa, numa tentativa desajeitada de reversão pela mesma estratégia, pendia a me convencer de que justamente Octavio Paz era colombiano.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Viajar

Foto: Sergio Larrain (Chile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.

Meu pensamento é feito do que o mundo me oferece.
No sonho tem um silêncio do mundo.
As palavras do sonho saem do que não fala.
Da gestação no objeto.
Depois vão pras bocas dos homens.
Mudam as formas.
Alteram as idades.
Descobrem o que ocultou a oferta do mundo.

Cada pedra posta em construção.

Dédalo também jogava dados.
Depois de presente, ser outra vez distante é vital.
No sonho revisito a cidade e ela pode então me falar.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Pausa

Foto: Jacque-Henri Lartigue (França, 1894-1986). Retrato com cigarro II, a atriz Gaby Basset, 1927.

Fumando um cigarro de palha tantas vezes adiado, me vi aí, suspensa. Por isso, pra mim sua casa agora se chama Posilipo.

O Besouro (trecho)

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem título, 1948.

Ela ergueu vagarosa o corpo da cadeira e se ajeitou na ponta do assento. O preto da carapaça do bicho refletia a luz que vazava pelas folhas da árvore defronte. Começou a empurra-lo com os garfos de um lado pro outro. Pressionava as asas. Empurrava. Numa tentativa de fuga frustrada, o besouro inverteu-se. Ainda mais frágil. O homem continuava a fumar em silêncio, mas franzia um pouco o cenho, o que provocou o sorriso da moça. Ela segurou o bicho levemente com as pontas do garfo na altura da cabeça e começou a sentir o corpo luzidio com a ponta da faca. (...) Em nenhum momento ele tentou segurar as mãos dela. Acompanhou, enojado e resistente. Ela sorria e acreditava muito científica que o crescimento era causado pela impossibilidade do grito. Um bicho que não podia gritar inchava mudo. Dividia seu regozijo entre o que causava ao besouro e ao homem, desordenada e cega.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Trânsito

Foto: Bill Brandt (Alemanha, 1904-1983). East Sussex, 1957.

Na aleatória composição do dia, o som invasor, por passagens mínimas, escorre escaldante preenchendo a fôrma do corpo. O som-cheiro, o som-gosto, o som-luz, o som-mudez: borbulha a mistura vermelha enquanto atravessamos a rua. Vivemos a passagem em ânsia de retenção. Assopramos pra que a lava seque, forme uma mínima sedimentação daquela luz cambaleante reflexa no rio. Em algum momento a cabeça tomba porque é preciso transbordar o sufoco.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Imprevisto

Foto: Edouard Boubat (França, 1923-1999). Paris, 1951.


- Mãe, lembrei das minhas lembranças!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Uma casa


Foto: Mariana Yapolsky (Chicago, 1929-2002). Falda huichola, México.
Este conto foi publicado no jornal literário de Curitiba, Rascunho: http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=4&lista=1&subsecao=12&ordem=1709

De pranchas de madeiras largas e finas, dobráveis, é aquela casa. Olhando da rua se atravessa ela toda, em sua umidade, em seu aleitamento manso da vida, em sua porosidade desavergonhada de existência em composição. Vê-se através dos vãos. Redoma de ar no meio do quarteirão do sertão. Engenhosa em enganar o entendimento do tempo. Algumas paredes já não existem e, à revelia do tempo, alguns móveis ainda estão. O banco sujo de pernas serradas da velha ainda estava. Frente à cama. A cama não mais. A avó deve ter se sentado ali tantas vezes. Sentava ali com cansaço morno de indiferença. Dobrou o corpo e olhou o chão de terra batida mais de perto. Encontrou uma carreira de formigas grandes. As meninas que nasceram na rua contaram que foi através das largas frestas que viram o vidro e a moça. Tudo contado com o devido sussurro. E nos gestos do segredo, uma mímica atroz das conversas adultas. Tudo prostrado dentro. Uma incômoda indignação frente aquela ausência que não entendia. Foi sendo criada sem barulho. E agora é o tudo momentâneo de seu peito. Foi se estendendo até ser. Neutralizou. E agora sem mais: era. Tinha passado pelo arrebatamento daquela paixão, e agora relembrava uma história alheia como quem pesca uma salvação, olhando fixo uma carreira de formigas grandes, de corpos fortes, pretos e patas vermelhas ariscas. O meio da carreira. No meio de um lugar onde jamais esteve. E a história volta como se fosse dela a dor nas entranhas. Queria uma dor assim. Era incapaz agora de uma dor assim, e isso era atordoante. Lembrava querendo sentir e distanciar o enjôo que vinha de sua própria vida anestesiada. Bichos e escombros se camuflam ali. O boldo se agita no vento e desprende seu cheiro enjoativo. E os cravos amarelos lá no fundo, perto do muro, refletem alguma luz que passa. Os lagartos correm entre a vegetação rente aos muros, a maioria, marias-sem-vergonha rosas e brancas, aos montes. Na calçada ainda velando, um chapéu – de – sol de antes de tudo, alto e cheio, sombreia e proíbe de nascer o que precise de sol. Os morcegos voam por ali nas noites por causa de seus coquinhos verdes. Os meninos brincavam por ali nas manhãs por causa de seus coquinhos verdes. E foi nas algazarras de uma manhã de domingo, quando a viola chegava ao fim da moda, que se confundiu em meio aos uivos da ventania e chiados da rua, pregão de sorveteiro e conversas de velhas que voltavam da igreja, o grito sufocado da moça da casa. Passou como o assobio do vento. Alguns pensaram ouvir alguma coisa, pararam atentos. Depois nada. Um chorinho de gato continuou a ladainha. Sempre muitas ninhadas de gatos ali entre as touceiras de erva-cidreira. A rua continuou. As mães gritaram o almoço. E a moça chorou e sangrou na cama. Junto dela, a avó que lhe tinha aliviado o peso do corpo e o medalhão de lata do batismo, com a imagem do anjo da guarda, pendurado com fita branca encardida da terra vermelha, na parede sobre a cama. Ficou doente depois, não quis enterrar a carne que lhe saiu na hora do grito. As meninas juraram que ela guardou em um vidro grande de conserva de palmito, ao lado da cama. Ajoelhava na frente e ficava olhando, movimentando o vidro, os olhos mortos, estatelados, a pele amarela, sombreada pela luz do toco de vela. Morreu logo. A avó enterrou o vidro junto.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Capital

Foto: Berenice Abbott (Estados Unidos, 1898-1991). Court of the First Model Tenement, 1936.
Depois do segundo metrô os rostos são ilusões de familiaridade que não se cumprimenta: espreita e imagina. Não ignora. Os mais à vontade detém o domínio da conveniência do cinismo. Mas não se ignora. É sofrido nos ombros, nos joelhos, no pescoço, nos punhos, nos tornozelos, nas falanges, esse reconhecimento, esse desdobramento. Depois desce na estação da Sé. O mundo desce na estação da Sé. Sem perceber já se está trincando no gosto, no tempo, na vontade. Trinca que desenha um rio no concreto. Abala a resistência à cidade, e não sabemos o que foi. O que aconteceu. Depois já é tarde demais. Já fomos inundados quando percebemos num assombro como é triste a agonia de um rio. Fugindo, aquela era a vida fendida abalada fornicada culpada prenhe. O barco repintado de branco e vermelho jogado nas margens do Tietê é acompanhado dos descuidos. E de repente é silêncio e paralisia na marginal do Tietê. É o silêncio de dentro daquele barco escuro, o silêncio impossível despregado da camada de tinta tão grossa que se pressente, a sua espessura. Todo mundo olha e a membrana de casas amontoadas estica maleável sua promessa de continuidade. A membrana tensiona e não saímos nunca. Não saímos mais. A cidade é feita das belezas obstruídas. A cidade comove. A cidade dói. A cidade é feia das belezas obstruídas, a cidade.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Leontina 3

Foto: Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Puertas, Ciudad de México, 1925.

Leontina seguia pela tarde. Ao atravessar os batentes da porta da casa, interrompeu a frase que lhe escapava resmungada do pensamento - a possibilidade de cair. Só uma insinuação, no entanto, porque não admitia pensar em fragilidades, e assim tratava as mais evidentes: como lampejos, clarões agudos que se dissolviam no escuro intenso que abolia profundidades, que incorporava anônimos tempos desconexos e emaranhados que formavam seu longo dia há anos. Demorou a acertar a mão no disfarce dos pontos vulneráveis, como tinha demorado a aprender com a mãe a fazer, irrepreensível, uma vira francesa.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Saudade

Foto: Paul Stuart (Estados Unidos, 1890-1976). Styll Life, Pear and Bowls. Twin Lakes, Connecticut, 1916.

Cozinha

Dentro da casa, construída com tijolos de lembranças, ecoam os barulhos da rua. Uma voz chama e a porta se abre: oferece um abraço e um café. Passos seguem até a cozinha, que testemunha profundas discussões acerca da vida, amor, política. Histórias complicadas, engraçadas, apaixonadas, evaporam no ar, se confundem com o vapor que sai da cafeteira. A cozinha transforma a suposta disputa em amizade. Nesse momento, a mesma cozinha recebe a visita de um certo Menegildo: Maín?!, ou de um quiabo (comedor de paredes) e seu sorriso gostoso e inexplicável. A mãe passa com pressa, em busca de algum livro. A irmã traz no colo a sua jóia. O anteriormente mitológico irmão chega e sai despercebido. E, na cozinha, todos se encontram, conversam, reclamam, sorriem. Outros cômodos da casa imploram para serem notados: a sala, que conta a história de um ratinho cozinheiro, ou um quarto habitado por dinossauros. Nenhum deles seduz tanto quanto a mesa, algumas xícaras de café e um bom papo. Ah, se essas paredes falassem...

Andrea H. P. De Fazio 05.12.07



Recebi esse texto da amiga Andrea no jantar de sua despedida de Assis.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Interior 3

Foto: Sergio Larrain (Clile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.

Facilitado pelos portões de grades e muros baixos que ainda resistem nos bairros, é perpetuado um antigo e tácito acordo entre senhoras: o direito de levar mudas, flores e ervas que possam ser alcançadas da calçada. Mas sempre na sua vizinhança. Não são bem vistas as que extrapolam fronteiras. E muito menos as que depois de visitadas, dificultam o acesso livre. A elas serão negados cravos, rosas, hibiscos, mimos dobrados, os maços de cheiro-verde, chuchus, couves e buchas. E principalmente os conhecimentos acumulados sobre todas as plantas comuns entre as casas, os diferentes jeitos de preparo, usos, proveitos. Foi flagrando dona Ignez contando as folhas arrancadas do meu manjericão verde de rama comprida que pendia balançante e convidativo fora de seus limites, terminando a conta em 12 das maiores, que soube da propriedade sedativa da erva: faço chá pra dor de cabeça e gargarejo pras aftas. Continuou cortando as folhas enquanto falava. Achava que tinha ouvido qualquer coisa sobre ser boa pra mordida de cobras e escorpiões. Mas aí já não sabia como preparar, se eu quisesse, ela perguntava pra Dona Ana da esquina de baixo. Eu ri me lembrando em voz alta de ter lido que, em algum dos séculos passados, diziam que quem cheirasse muito manjericão ficava com o cérebro cheio de escorpiões. Ela gostou da história. Ia contar pra Dona Ana. E contei que também é chamado de basilisco porque foi alimento de uma deusa-serpente chamada Basilisk, que matava com o olhar: não mordia não? Não, só olhava. Ela quietou os movimentos esparolados pra me olhar de um jeito a me fazer entender que, mesmo com minhas contribuições pouco práticas, eu acabava de firmar o acordo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Poema matinal do Rodrigo antes do pão de queijo prometido:

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).


Ou é

Nalguns dias gosto de leite,


Com café.


Noutros não.


Bom mesmo é cigarro com café


Toda manhã.


Se um charuto é só um charuto,


Café é bom.


Se um cachimbo não,


Não!


Bom é o leite, ou o cigarro, ou...


Ou não.


Será que o café me toma volúvel?


Acho que não.


Também é solúvel e indeciso.


Ou não.


Acho que é o ou não.


Não engano nem dona Canô,


Nego com dois nãos pra afirmar:


Café é bom!


Ou café é cachimbo? ou !


Ou não.


Ou etc.

Poema do amigo Rodrigo Cracco.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Baús, caixas e pastas.


Foto: Leo Matiz (Colombia, 1917-1998). Polígono.

Revirar guardados expande o tumulto de tantos caminhos. Outra língua é a que responde pelo tempo acumulado na poeira e no cheiro que lembramos, e é pouca a previsão de onde vamos tirar a voz de argumentar. A surpresa foi dar com uma serenidade de exaurir o fôlego.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

As coisas

Foto: Ralf Gibson (Estados Unidos, 1939).


Quando criança ouvia minha mãe dizer que, no escuro e no silêncio, os livros da biblioteca sussurravam suas histórias e definiam, a revelia do dono, suas afinidades e seus lugares na estante. Ou decidiam sumir, como outros objetos, entre as nossas mínimas distrações. Hoje, diante de um desses sumiços mágicos, perguntei ao Menegildo se sabia da minha carteirinha da biblioteca (que sumindo assim, me diz do desejo de se esconder, não de um livro, mas de uma biblioteca inteira). Respondeu com um levantar de ombros que, como não tinha sido coisa dele, era muito provável que fosse coisa do Saci, já que anda ventando muito ultimamente. Então segui seu conselho, e acendi uma vela ao Negrinho do Pastoreio.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Acordar

Foto: Paul Strand (Estados Unidos, 1890-1976). Kitchen. Loch Eynort.


Levantou resvalando nos sonhos. Buscou os chinelos debaixo da cama morna e seguiu pelo corredor que impregnou com sua névoa azulada. Translúcida, incorporou os goles de café.

domingo, 11 de novembro de 2007

Leontina 2

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976).

Ver Pensamento, tudo que a mente frutifica: http://pensas.blogspot.com/


Antes do violino cessar, Antonio batia na porta os dois toques curtos, e a Leontina que atendia tinha já os olhos de entrega que ele bem conhecia. E sorria doce do jeito que não costumava ser. Então ele tirava o chapéu de feltro verde escuro e o pendurava no espaldar da cadeira, junto da toalha molhada. Jogava o paletó na poltrona enquanto Leontina tirava as nêsperas - que era um dos tantos mimos constantes que ele lhe trazia - do pacote de papel pardo, e as arrumava, as quatro, no criado-mudo ao lado da cama, junto de um pequeno baú de madeira que era mantido sempre vazio.
Antonio foi surpreendido pelo gostar daquela mulher quieta e séria à braveza, que primeiro lhe foi rude, pra só depois aceitar a rosa única que ele ofereceu já na iminência de desistir, com a frase dita a seco, em seu tom monótono: Sua teimosia junto com o desenho das sobrancelhas me aproxima de Gaetano. Acostumou, não sem antes se bater inutilmente com seu orgulho, ao convívio com o segredo que o silêncio dela guardava e que os olhos tentavam alcançar quando no desespero do amor, fugiam dos seus e fixavam o pequeno baú vazio. Disse a Leontina uma única vez de seu desejo de casar, e a resposta foi no mesmo tom da primeira: não. Apesar de querer insistir, se conteve por saber que ela lhe falaria com sua tranqüilidade áspera o que já sabia, e preferiu não ouvir todas as letras, a história toda, e continuar ali com ela, da maneira inventada por ela de através do amor dele, amar outro homem.

sábado, 10 de novembro de 2007

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tempo

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Estranhamento, 1948.


O cotidiano se povoando de visões: alucinações de sons e imagens. O espelho da cômoda multiplica a diferença marcada, pontuada, interrompida. Repassa gritante na superfície que reflete os nós, os traços que foram e serão, numa ausência aterradora do que é. Nas laterais, espelhos retangulares, menores e reguláveis possibilitam ângulos, apostas, encaixes, no revirar dos pedaços. Nesse rogo desesperado de minha orfandade, me alcança um jogo de montar.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Esquecido

Max Ernest (Alemanha, 1891-1976)


O poder de recusar.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Leontina

Foto: W. Eugene Smith (Estados Unidos, 1918-1978). Vila espanhola, 1950.


O que saber de Leontina. Os vestígios encontrei num domingo desgostoso, disfarçada em algum contentamento que por teimosia me obrigava a sentir, empurrando pra insônia seguinte todos os dias e a frustração. Entrei me traindo no quarto de despejo entulhado com Leontina. Tenho ainda sob os olhos a Leontina que me era apresentada como espólio dos anos que vieram dar aqui a nado, da guerra velada que lutaram entre si. E que se estende. E que eu estendo. O que saber de Leontina é pelo interesse em mim mesma. Sentia ferroadas com a exposição, porque tudo foi mostrado e descrito como se eu fosse cega e não pudesse ver a foto no diploma de modista e a data: 1934. Porque tudo foi exibido num descontrole sujo. Na minha cara, com improviso torto, amarfanhado, sorriam entre sufocos de afogados e transformavam Leontina em fábula de moral edificante. As entranhas contorceram, e agora deu que quero saber de Leontina.

domingo, 14 de outubro de 2007

Delicadezas

Foto: Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Laserpitium Siler.


Chuva voltando. A chaleira amassada de tampa perdida chia na chapa de ferro.
Chia, chia, dona cutia: faz o eco das gargalhadas lá do terreno.
Todos correndo atrás dos anus, coitados, que parecem aviões de calda quebrada brecando o nariz no chão.
Quanto tempo a bolha colorida dura no vento aberto?
O presente é um galo pra acompanhar quando acorda às cinco da manhã. Pode falar comigo?
Chuva caiu. Café com bagaceira na xícara dos adultos. A comunhão silenciosa rodeando a mesa. O tico-tico, íntimo, palpitando. Uns suspiros e os cochichos dos brinquedos que descobrem os cantos empoeirados. Foi mais um domingo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Formigas

Foto de Ruy de Souza Dias (São Paulo, 1950-2003). Fez, Marrocos, década de 1970.


Sigo com os olhos os andares das pequenas formigas que invadiram a casa, como em toda primavera. Aqui, na parede a minha frente, em frente à mesa onde escrevo, caminham ondulantes pelas molduras das fotos. Passam recortando pela mulher esmolando na entrada da cidade, pelo menino com a sacola, parado na pose que se sugere improvisada em uma rua de pedras em degraus, e pela velha que segura na boca uma ponta do pano que lhe cobre a cabeça, enquanto ensaia o próximo passo, o que a levará pra dentro de uma das tantas portas estreitas que ponteiam as ruelas de uma Fez dos anos 70 onde morou o pai do meu filho. Com o mormaço amolecendo o corpo, recosto na cadeira pra melhor seguir as indicações das formigas. De uma foto a outra, indo e voltando, me induzem reescrituras das histórias que fui inventando, conforme convivendo, pra essas fotos. A memória invade sorrateira e escuto de novo como foi aquele tempo no Marrocos. Escuto sobre os copos grandes, cheios de água fervente e um ramo generoso de hortelã imerso: bebem isso durante o dia todo, intercalando com as baforadas no narguilé, nas portas das lojas e casas, Priruli, debaixo de um calor de quarenta graus. A voz é a mesma de sempre no jeito único de me chamar. Deixei de me assustar quando o escuto nitidamente. A morte não paralisa e o morto não deixa de surpreender em suas formas. Essas fotos são o olho no olho com o morto.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Idéias Extravagantes

Foto: Man Ray ( Estados Unidos, 1890-1976). A l'heure de l'observatoire - Les amoureux.


Dessas que surgem enquanto os olhos,
entre contenção e desabalo,
desatam os nós do alfabeto composto em línguas.
Idéias atentas aos ouvidos os acompanham até a rua:
Insistência do som: coincide, às vezes
- a boca repete sem pensar, voz intrusa -
é o que cochicho ao teu ouvido.
As contas mensais cansadas e as buscas de quem?
afinal vão se intercalando ao trabalho cotidiano.
Espera duvidosa do esvair-se diante da expectativa
que não tomba nem levanta bandeira branca.
As mais absurdas suposições criadas
pela construção fantástica a remontar histórias.
Fatos e conclusões transcendem ordens e se deliciam
nas desordens de aprazíveis polpas a vazar entre os dentes,
das relações entre - sempre, porque os caminhos
são a composição -
da formosa tormenta conjurada à revelia,
e o princípio inesperado do encantamento desabrocha,
atordoante como uma espiral de sonho
depois da noite insone.

domingo, 7 de outubro de 2007

Interior 2

Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986). Casa, barda y árbol.


Pelos pastos, esparsas árvores. Muitas Farinhas-Secas com seus troncos claros sinalizando a vista de quem vai pela estrada no começo da manhã. Ondulações ligeiras da terra permitem que se aviste os ocos onde se escondem riachos raquíticos e bois deitados. Coqueiros recorrentes. Bambuzal. Com intervalos de cercas, hortas e galinheiros, casas de tábuas de pintura velha com alguma mulher que varre a terra da frente da porta da cozinha guardada pelo Chapéu-de-sol e pela Primavera carregada de flores cor-de-maravilha. O dia desce, mas o sol não consegue romper a poeira que é redoma nos horizontes. O calor paralisou o tempo no meio do nosso peito e é difícil de respirar. As laranjeiras. Um homem a cavalo chega na beira da estrada. Vê que do carro alguém olha. Segura firme as rédeas do animal que entorta o passo pra direita, e acena com o chapéu e o sorriso. A cana enrodilhando vilarejos. Um Tietê calmo e ondulante, que ainda não sabe da cidade de São Paulo, se estende longe e largo. Tanta água parece destoar. Ser pra ela mesma. Isolamento que arrebata o pensamento.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Notícias de antes da viagem

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976). Sem título, 1931.

Domingo de manhã ventada e passeio com o menino
As risadas deslizavam quentes do sol
Suamos o caminho da volta.
Ouvimos o jazz e fizemos babaganouj
Comemos
E continuamos as descobertas da mitologia indiana.

Na segunda,
Pensar na mala, na passagem, no trabalho.
O dinheiro contado diminuiu no caminho:
No sebo encontrei as cartas do Graciliano pra Heloísa.
Leio as cartas de amor:


“Eu, como te disse anteontem, não entendo de confissões, nunca me confessei. Mas declarei que estava disposto a ajoelhar-me diante de ti. Imagina que estou de joelhos.”


Em algumas horas estarei na estrada.
Vou olhar pela janela do ônibus
e ficar cada vez mais interior.
Levo em meus lábios o seu silêncio.

sábado, 29 de setembro de 2007

Partir

Foto: Werner Bischof (Suiça, 1916-1954). Acería en Jameshedpur, Índia, 1951.


Sentia vontade de voltar. Mas não. Os pés autômatos iam em frente. E confiou o caminho, apesar de relutante. O corpo mais estranho. Menos seu. Seguiu pelas pedras da rua. Virou a esquina e uma ladeira lhe inclinou pro equilíbrio. As árvores da alameda que beirava o rio, conforme se moviam, aumentavam. Sombreavam a vista. Um banco de praça quebrado estava vazio. Mal sentou escondeu o rosto nas mãos. Mas não conseguiu. Só um ganido. Teria que voltar ao quarto da pensão. Voltar e levar embora o resto. Embora. Súbito, entendeu o que ouvia: a água descendo pelas pedras. Sua mãe lavando a roupa. Seu choro de cara vermelha e boca escancarada na margem. O tombo nas pedras e o ser puxado pela correnteza. As músicas depois que aprendeu a falar. Os gritos do pai no começo da noite. Depois desapareceu. Depois a quietude. Todos os dias em silêncio. Envelhecendo muda, a mãe. Então, o trem no fim da infância. Sozinho. Embora. E já outra vez ia embora. Com o que tinha ficado daquela vida: a foto, a fita branca de cetim. As roupas deixaria pra dona da pensão.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Reaprendendo

Foto: Ileana Gavinoser (Argentina). 2005.


Deixou a lição da escola pra fazer depois de comer o café da manhã. Empurrou a toalha descobrindo um pedaço do tampo branco da mesa da cozinha, e ali abriu o caderno, espalhou o lápis e a borracha. Parei pra olhar distraída entre os goles de café, encostada na pia, de costas pra janela aberta que mostra o jardim seco. O corpo de menino ainda vestido com o pijama, ajoelhado na cadeira, se dobra sobre as letras que vai desenhando, que vai dizendo em voz alta, interrogativo pra si mesmo. Vou me perdendo nos movimentos e na voz dele, no café, no vento leve que me toca as costas, no morno da manhã onde tento acordar. E de lá onde fui parar, lentamente retorno quando percebo que agora ele se dirige a mim, sem levantar o rosto nem parar o que faz: isso não é fácil. Você também achou difícil um dia, só não lembra mais porque acostumou.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Da urgência

Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956). Década de 1920.


De um caco de vidro verde encontrado na rua,
Do som do girar do pião do menino,
Do passo indeciso,
Do tilintar dos talheres no almoço,
Do suspiro do corpo cansado,
Das palmas no portão,
Do chacoalhar das folhas impressas pelo vento,
Daquela estrela cantada por Maiakovski,
De toda implicação da vida no grito e na ausência dele.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Salto do alto

Foto: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Perspectiva, 1949.


Os tombos que seguem a escolha, seqüenciados, embaraçados, nítidos, abismados. E aquele fiapo que fez a diferença se encobre e descobre sibilante, ondulante. Querendo, enjoando e querendo. Caímos de ou caímos no: tomber amoureux; fall in love.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Mimetismo


Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Aesculus Parviflora.

De uma funda tristeza, esse quente do vento. Desabotoou a camisa que guardava o inchaço desassossegado do corpo. Ele assim, sem a cobertura, procura água. Mas aqui não chove e não tem previsão. Nem bacia. Rio é longe, mais ainda o mar. Aí vira bicho que rasteja lá pro canto escondido, no encontro do muro com as plantas cheias, onde é mais sombreado e fresco. Entredormente dirige os sonhos com oásis e outras frescuras pro deleite, enquanto escuta os cantos das crianças e os chamados dos outros. Hibernado, fingido de morto, sobrevive.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Circulação

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). Frida Kahlo.


Um corpo parado por muito tempo no mesmo lugar ilude a si mesmo. A circulação dá uma volta inesperada e muda o ângulo da carne. A cabeça inclina pra posição desconhecida porque impossível no corriqueiro. De tanta paralisia, dimensiona além pra se mover como se movem as plantas.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Galinha

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).


Lá fora, olhando pela grade do portão, ele cantava mamãe eu quero. Passou a mulher vendendo ovos e lhe deu um. Grande e marrom. Entrou equilibrando aquilo nas pontas dos dedos da mão direita: Ó! Sou malabarista! Foi pra cozinha e começou a operação meticulosamente. Pegou um dos potes de comer cereal, o amarelo: pra ficar mais quentinho porque é cor do sol da hora que vou pra escola. No banheiro, fuçou no armário até encontrar o pacote fechado de algodão. Com os chumaços foi montando a caminha dentro do pote. Arrumava o ovo lá no meio dos algodões e olhava. Aí arrumava de outro jeito. Depois olhava. Mudou minimamente e sorriu: pronto. Começou a cobrir com os algodões, terminando com um trapo marrom que encontrou na casa da vó. Quando viu a cara da mãe olhando, de braços cruzados, encostada no batente da porta, fez a cara dele de paciência: não posso sentar em cima senão quebra!

domingo, 9 de setembro de 2007

Rimas do Igor num domingo de rede

Foto: Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). Detrás de la estación de San Lázaro, 1932.


O corpo


No passo
No pulo


Da poça


Passa.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Tentativa de carta ao Moço Sério:

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976). Noir et blanche, 1936.


Não tenho outra ponte. Nada mais que me leve. Que me conduza. E eu quero chegar. Eu tenho que ir. Assim como estou agora. Plena em meus andrajos. Porque é assim que estou. Os andrajos não me comprimem. Expandem. Não sou definitiva. Sou todo um baile de máscaras que o ser andrajosa me permite. Posso arriscar direções. O movimento conduz a identidade. O sufoco agora é que o único movimento que corre essa distância é a palavra. Minha oferenda. Minha dádiva. Meu desespero. Minha. Leva até aí o esvoaçar dos meus contornos para que eu continue sendo. É o tormento consentido. Uma busca que supera a mim e a você porque destroça e cria. Desaprendemos pra continuar. Assim, devidamente tomada, nenhuma palavra é gasta demais.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Aspetto

Foto: Imogen Cunninghan (Estados Unidos, 1883-1976). Magnolia Blossom, 1925.


Escuto sempre os passarinhos no meu quintal, pela manhã. E durante todo o dia. Tenho o suspiro certo guardado pro despertar. Da boca do estômago. Não costumo apegar-me aos humores. Saio pro sol já tão quente. A roupa molhada, torcida, estendida. Vejo que as ervas dos canteiros vão bem. Menos o orégano, preferido dos pardais. Produzo os cheiros que saem pela janela da cozinha. À tarde a casa recende aos panos ensolarados. Tem os insetos quando volto a fechar as janelas. O vento e a primeira estrela. O dia vai e me leva. Atenta. Aguardo.

domingo, 2 de setembro de 2007

Calendário

Foto: André Kertész (Hungria 1894-1985). Chez Mondrian, Paris, 1926.


Fiz de ontem o meu Ano Novo, meu Yom Kippur, meu Dia Fora do Tempo. Limpei a casa, troquei as cores, reencontrei pequenos pedaços meus em selos, roupas, bilhetes dentro de livros, flores secas, dedicatórias, idéias anotadas. Coisas deixadas pro reencontro surpreso, dadas a inventividade da memória. Renovei as inutilidades. Consagrei os rituais cotidianos. Acendi a vela assentada em um pequeno pedaço de papel com um desejo. Não sei se com as bênçãos de Sírius. Nem sei se algum ciclo lunar tinha se fechado. Mas foi confirmado pela vizinha que agora todos estão sob Saturno em Virgem, daqui até dois anos, e que isso me faria mais preocupada com organizações e saúde. Eu não sei de nada disso. Sei que de ontem fiz meu Ano Novo, meu Yom Kippur, meu Dia Fora do Tempo. E me sinto esfuziante como em todo começo.