Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Ode aos meus recantos

Foto: Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002). Maguey.

elefantes e rinocerontes
não cabem no meu deserto
diminuto corpo árido
carreiras de formigas cortadeiras
letais pontadas tocaiadas.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Das reverberações

Foto: Ywgeni Khaldei. (Ucrânia, 1917-1997). Französische Strasse, Berlín, abril 1945.

Uma reportagem em jornal estrangeiro, 2003: no silêncio que o vento batendo no microfone da câmera oprime, dois jovens iraquianos caminham sobre os cacos abundantes da pequena casa, onde poucas horas antes encontraram os corpos de seus pais e do irmão mais novo. Pisando atentos os escombros (o som dos sapatos escorregando pesados nos restos de construção que sedem ao peso dos corpos compõe com o do vento no microfone da câmera) procuram por documentos, encontram fotos, pedaços de papel, e dizem em um inglês singular das lembranças desordenadas que o luto tão recente descobriu. O jovem mais duro abaixa e pega um livro. Depois de olhar a capa por um tempo interminável só coberto pelo vento, diz que o pai, que não gostava de ler, só lia aquele poeta espanhol que tinha perecido numa guerra. Abre o livro e encontra o que queria. Olha de frente a câmera e lê em árabe, língua tão própria ao poeta andaluz. Joga o livro de volta aos escombros sem olha-lo. A câmera fecha na capa do livro: em fundo vermelho forte, a foto mais conhecida de Garcia Lorca em verde.

domingo, 25 de maio de 2008

Cartões russos (trecho)

Foto: Horacio Coppola (Argentina, 1906). Calle Victoria esquina San José, 1936.

Uma cidade é sempre uma invenção tão pessoal quanto as vidas que comporta. Lembrava-se da cara que fez, de Carmen ouvindo a música do destino nas cartas ciganas, quando encontrou os versos de Tarkóvsk no emaranhado das cartas-cartões, lívida e corajosa. Duas linhas em caneta tinteiro, em letras similares ao que já havia visto talvez um dia quem sabe onde perdido no seu tempo que foi se prolongando.
Pediu a informação ao garçom. Sério e solícito, ele disse que não sabia dizer, mas iria ligar para o serviço de informações da cidade. Da mesa onde estava, através da grande janela de vidro fosco, cheia de cartazes e adesivos e cardápios (: El Rincón Del Cacique, Savarin Turismo compromiso por el servicio de calidad, Super Mila huevo frito ensalada 2,99, Fiesta Gaúcha, Hotel Europa a metros del obelisco, ponga línea celulares tajeta de 80, La Perla café-bar-minutas, Tango show Humberto 1º 489), pode observar o homem ao telefone. Voltou minutos depois com um pequeno papel: colectivo 28 + Maipú. Ainda gesticulando como quando ao telefone, com os olhos muito escuros mantidos baixos no papel, e com o movimentar interrompido e várias vezes brusco do bigode tão longo que lhe escondia a boca, disse que deveria descer na segunda parada, dobrar a esquerda logo no fim da mesma quadra. Poderia ver o prédio na esquina. Entregou o troco do café, agradeceu, mal ouviu os agradecimentos pela informação e voltou-se em direção à porta estreita do café, sempre vago, fugidio, sem paciência, cansado. No limite entre o toldo do café e o céu nublado, as pontas dos sapatos de pequenos saltos começavam a receber a fina garoa, que ia se espalhando e descendo pela superfície até fazer a volta do solado, e isso fez com que ela parasse.

sábado, 24 de maio de 2008

O lagarto

Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986). Troncos.

Tinha o rosto macilento e suas roupas nunca pareciam suas. As saídas de casa eram sempre rápidas, furtivas como os olhos. Quando precisava andar mais de um quarteirão, percebia-se nitidamente o desconforto nas mãos que percorriam os braços ou puxavam a barra da blusa. Sua voz tentava um tom mais baixo, mais suave, mas sempre soava falsa e constrangia. Não tanto quanto sua risada. Surgia tão despropositada e infame, nervosa, e terminava com uma espécie de soluço que se prolonga até sumir. Quando conversava mantinha uma seriedade distante, presa não no que ouvia, mas na rigidez de seus próprios juízos. Suas relações eram estúpidas. De cada frase, gesto ou assunto das pessoas que ainda restavam ao seu lado, tirava horas de um monólogo exaltado e inútil, onde sempre deixava claro o quanto as pessoas aproveitavam de sua bondade e disposição para ajudar. Era a única que acreditava nisso, mas não importava. Seu rosto congestionava, as rugas ao redor da boca se apertavam e movia os lábios numa tentativa ridícula de sensualidade. Nos olhos surgia um brilho seco, contundente e frio. E nessas horas as coisas que dizia, seus gestos, sua figura, provocavam em quem via uma angústia que conforme sufocava e subia aos olhos, poderia estrangulá-la. Foi num desses momentos que, olhando pela janela, viu um imenso lagarto verde atravessando seu jardim. Dirigiu-lhe toda sua fúria, lhe atribuiu toda a vergonha e desgraça que já sofrera e as possíveis vindouras. Quanto mais berrava mais se irritava com aquela indiferença de lagarto. Foi quando seus olhos quase saltaram com o bombear do sangue e seu grito tornou-se contínuo, que o lagarto soltou rapidamente sua língua. Depois de totalmente enrolado, o corpo foi puxado para dentro do animal, que imediatamente tornou-se imóvel como uma pedra. Suas unhas cresceram em segundos, cravando-o ao chão. Muitas foram as tentativas de tira-lo daqui, mas foi impossível. Então os passarinhos começaram a usa-lo para descansar e os musgos cresceram.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O sonho da noite de chuva de granizo

Foto: Ansel Adams (Estados Unidos, 1902-1984). Mount Williamson, 1945.

Foi uma descoberta lenta o meu sexo masculino. Alto e magro de cabelos claros. Corria junto a outras pessoas. Fugia ao mesmo tempo em que tentava identifica-las. Não sabia ao certo se o que nos unia era a fuga ou se já nos conhecíamos, se éramos amigos. E mesmo antes de ter qualquer certeza, já estávamos todos presos em uma sala retangular escavada na pedra. Na tentativa de fuga havia perdido minha sandália esquerda, por isso fui o primeiro a sentir com mais intensidade algo não comum no chão da sala escura. Sabíamos todos que quem nos perseguia era de renomada crueldade. Comunicávamos essa certeza pelos olhares e gestos que tentavam conter o desespero. O medo era visível em cada um. Eu me via de dentro pra fora e de fora pra dentro ao mesmo tempo, o que me causava vertigem que era intensificada pelo temor do encontro físico com o perseguidor. Mas ele não apareceu assim. O que usou pra nos aterrorizar e dar a certeza de sua real existência e de nossa morte, foi o que cobria o chão todo numa camada espessa que machucava meu pé descalço e nos fazia perder a firmeza no andar: os dentes dos inimigos que mataram. Sem o encontro, o sonho pôde continuar por dias plantado na base da espinha dorsal como volúpia crescente pelo acontecimento brutal ainda indistinto, mas certo.

terça-feira, 13 de maio de 2008

As palavras no menino

Foto: Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Fios telefônicos, 1925.

Quando alguém fala louca ou louco
na minha cabeça eu vejo uma corda comprida
que sobe e desce no ar
como a corda balançada pra gente pular.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Verticalidade

Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956). En la acera, 1928.

as ruas têm falta de cheiro, o que me desnorteia
irritadiça calma da manhã, eu descubro, não existiu
nas calçadas todas abertas: desníveis, buracos, estreitezas
espalhadas pela cidade toda obtusa
segurei-me pela gola da roupa tantas vezes
impedindo a cara ralada no asfalto
que encrespou a pele no vento de casca de árvore
pasmada alta no vôo de urubus
sobrancerias maculadas daquele azul descaradamente
desdobrado por cima do mundo