Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Invisível

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).

Todos os desenhos das crianças da classe foram expostos no corredor da escola. Em cartolinas grandes. Eram árvores com maçãs e cerquinhas. Arco-íris em quase todos. O desenho do seu menino era colorido e disforme. Manchas de cores e tamanhos diferentes. Não reconhecia ali nenhuma forma do que fosse, por mais que olhasse. E ele estava ali, ao lado dela, esperando seu comentário. Ela fez foi uma pergunta: O que é isso? E ele, muito direto e impaciente com as incompreenções, como de costume: ora, são os poderes das coisas!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Planos

Foto: Martín Chambi (Peru, 1891-1973). Muro de las cinco ventanas, Wiñay Wayna, 1941.

Quebrando um silêncio de dois quarteirões de sol quente, o menino que andava alguns passos a frente se volta com a pergunta: Você tem certeza de que isso é vida real?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Desvaneio

Foto: Ralf Gibson (Estados Unidos, 1939). Shadow and man with cane.

Na sensação pouco reparada de distorção das sensibilidades imposta ao corpo e ao pensamento que acontece com certa freqüência em caminho feito diariamente, trocando os passos sem acompanhamento e sem importância, fazendo mentalmente as contas do mês, passou pelo velho cavado no centro de sua magreza, carregado das sacolas de lona suja. Foi arrancada da distância e jogada no meio da rua pela voz assobiada entre os dentes sobrantes: meu coração sente falta de alguma pessoa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Nota

Foto: Mariana Yapolsky (Estados Unidos, 1925-2002). Osario. Dangú, Hidalgo.

Em um gravador esquecido no fundo da gaveta encontrei a voz que um dia será a minha. Minha voz envelhecida no gravador que, de quebrado, foi vidente. O vislumbre da Lívia: entre a sombra da lâmpada da Praça da Bandeira e os cabelos que cresciam, meu rosto de mulher de quarenta anos.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Prévia

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem título, 1949.

Cinco da manhã. Só ali, só aquele bar aberto. Levantou da mesa vermelha com distração. Sentiu uma mão alheia escorrendo pelo braço. Soltando lenta e longe a sua carne. Caía o sono com força. Atravessou as poucas mesas da calçada e o corredor que seguia com o balcão e as pessoas sentadas. Todos olhavam a rosa no cabelo dela. Único indicativo do carnaval. Era véspera. Lá no canto escuro da lâmpada queimada tinha o buraco que era entrada do banheiro. Espiou por baixo da porta. Tinha alguém ali. Alguém que não saía. Então bateu, sem jeito. Saiu a moça de blusa azul. No espaço pequeno passou se apertando contra a parede sem ver a outra. O chão ao redor do sanitário estava alagado. Levantou acima dos joelhos a barra do vestido. Agachada via pelo meio das pernas a urina que expelia e sentiu vertigem. Tudo vertia água. Tudo podia se desfazer em água. Depois abriu a porta e deu com a moça de azul ainda ali. Enxugando o rosto com as tolhas de papel. Não da água da pia. Ela chorava. E insistia em enxugar. E chorava. Sem perceber, a que saía parou pra olhar aquele trabalho de Sísifo. Parou bem atrás dela. No espelho surgiu uma rosa branca na cabeça da que chorava. Então ela parou de enxugar, e os olhos cheios fitaram complacentes a própria cabeça onde surgiu inexplicável, uma rosa branca. Elas riram antes de sair dali.