Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Declaração (trecho)


Cristiano Mascaro (Brasil, 1944). São Paulo.


Se ela estivesse ali, diria que sabia que agora ele abriria a cortina da cozinha, porque a chuva começou e com ela o escuro do dia. Que só assim abria a cortina da cozinha, quando vinha muita água. E era o fim do dia com muita água. Com as mãos apoiadas na pia gelada ficou olhando lá fora e pensando nela e no que ela diria. E sentia tanta raiva vindo de um jeito desacostumado nele que encheu o peito de ar e custou a soltar outra vez. Suja de respingos de café, amarfanhada das leituras a carta em cima da mesa. Um pedaço, um destroço que se materializava:

Eu sou pior. Pior que essa cara gelada que te deixei ver hoje. Muito pior. O que eu quero é egoísta. E você vê isso com muito mais clareza do que eu posso ter. O que disse é só um pouco do que tem guardado sobre mim. Deixou que eu soubesse só disso, com a cara escondida no escuro da sala, revirando os dedos pelo rosto. Viu como eu sei: é o que as tuas mãos calmas me diziam. E você se perde nisso que não tem nome, nesse espaço que é nosso. Que sim, temos um espaço. Estranho. Ele existe nisso que não entendo. A sua percepção é boa. Certeira. Você me passa a idéia de nunca se confundir. De sempre saber o que deve fazer. Mas isso não protege. Nunca. Veja, hoje você precisou de mim. Precisou que eu te desse a minha energia. Mas eu não dei. Porque estou comodamente recebendo de você. É isso que quero. Receber de você o meu alívio. Egoísta. Mas você não diz. Eu queria que você dissesse. Sabe. Aquele começo de arrepio que dá por dentro quando a gente sabe que vai ouvir uma coisa indesejada, uma coisa que vai nos deixar mal. É uma volúpia. Eu quero que você me diga que não gosta. Que aquilo pra você não diz nada. Você quer dizer agora, às vezes você diz indiretamente. E já sei que quando você disser vou fazer cara de quem tenta não se ofender. E vou sentir raiva. Vou congelar de novo. Sabe o que é? Hoje foi também. Cara de quem não gosta de ser contrariada. Ainda mais por você que está aí pra me fazer me sentir bem. Que não deve me dar incômodos. Egoísta. Esse será meu mote agora. Isso foi uma resposta? E eu direi que não. Que é por tanta coisa que não é você. E não estarei mentindo. Isso é assim. As coisas vieram com mais força antes de você. Mas você soube desviar. Infringiu as regras. Excitante como uma ameaça.


segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Interior 8


Paul Strand (EUA, 1890-1976). Katie Margaret MacKenzie.


Quando a menina era menina gostava que a mãe lhe dividisse os cabelos ao meio e fizesse um pequeno coque de cada lado da cabeça. Usava o vestido de xadrez miúdo, laranja e branco até os joelhos. A sandália era de couro marrom e ela queria que fossem sapatos brancos de fivela. Com o dinheiro enrolado na mão direita e as recomendações do pai pra prestar atenção na rua, não conversar com estranhos e voltar o mais rápido possível porque ameaçava chuva forte, a menina foi. O caminho cotidiano se mostrava pela primeira vez. Séria e compenetrada fez a compra em menos de quinze minutos, mesmo tendo esperado um pouco na fila da padaria do mercado. Iniciou a volta estampando a descompostura exultante da satisfação por ter feito tudo sozinha. Reolhou as coisas do caminho ainda mais uma vez outras. E sentiu a barriga gelar quando a pedra do jardim de uma casa andou. Diminuiu o passo e a respiração. Sem muita demora a memória das ilustrações dos cartões dos Chocolates Surpresa lhe acorreu no reconhecimento do enorme jabuti. Sem prestar muita atenção aos próprios movimentos, sentou-se na calçada em frente ao bicho, estendendo o saco pardo com os pães ao lado. Anos mais tarde não saberia dizer o que exatamente observou no animal. Provavelmente os detalhes dele. Deve ter achado que parecia um homem velho e triste. A lembrança voltaria nítida quando o jabuti já entrava outra vez no mato alto do jardim e a voz gritada do pai lhe alcançava ao mesmo tempo em que sua mão, que com um só puxão lhe pôs em pé. E ainda os grossos pingos da chuva. Outra vez a memória cede. Não recorda o que lhe foi gritado, mas o rosto vermelho do pai que grita lhe causa vertigem. Sabe que deve uma explicação. Sente raiva e um impulso tremendo de esconder dele o jabuti: queria alcançar a margarida branca. Foi de volta pra casa soluçando um soluço que doía a garganta. Enquanto a menina foi menina, voltou muitas vezes secreta até a casa do jabuti.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Preto no Branco (trecho)


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). El espiritú di Licabeto I, Atenas, 1937.


Queria fumar no degrau branco da cozinha. Ver a chuva afogando o mato do fundo da casa, estragando as rosas abertas. Mas não tinha cigarros. A fineza da sombrinha servia minha ausência. Foi com ela que saí pra baixo d’água. Achei a padaria ainda aberta. Eu não sorri pra moça do caixa naquela noite. Eu não vi a moça do caixa quando estendi a mão molhada e vi mais que senti as moedas do troco na palma. Queria voltar e sentar no degrau branco da cozinha. E fiz a volta longa. Não era costume, mas servia à minha ausência. Parei sob o toldo da barraca de caldo de cana fechada. Resolvi acender um cigarro ali. Só me dei conta das pernas das calças molhadas até os joelhos quando me apalpei procurando o isqueiro que não estava. Aliás, nem as chaves. Imaginei o chaveiro grande e brilhante se balançando do lado de fora da fechadura do portão branco. Como muitas vezes. A mão da prostituta tinha um isqueiro e acendeu o meu cigarro. Ela eu vi porque a minha ausência reconhecia o branco leite do esmalte dela. Ela fumou também. Olhou a chuva de frente e os meus pés em chinelos de esguelha. Eu também me olhava de esguelha e a chuva de frente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Café


Henri Cartier-Bresson (França, 1908- 2004). Martine Frank, Paris, 1975.


levantou os olhos de dentro da xícara carijó
enganchou de viés uma braveza nem sabida
trouxe o revés de direito
na boca vazante do pressentido
não pede nem deve
o consentimento pro uso do possessivo

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Trecho de conto


Eugène Atget (França, 1857-1925). Intérieu Avenue Montaigne: la cuisine, 1910.


Naquela manhã do dia 21 de junho abriu a janela da cozinha com descuido de coisa costumeira. A pequena janela de vidro sujíssimo que guardava alta a parede da cozinha. E aberta a janela e as narinas, inspirou fundo e trouxe o frio pra dentro do corpo em pequenas agulhas de cristal azulado, sapatinhos de pregos perfazendo o interior oco do corpo. Foi como se cócegas espasmassem a casca da velha protegida em coisa de lã. Sentiu doer repentinamente o canto esquerdo da boca, como se recebesse ferimento naquele instante, pra logo em seguida conferir que os latejos eram os mesmos de sempre. Só tinham despertado em atraso naquela manhã aurora.
Em outro lugar não poderia encontrar minha tia.
A voz do menino, mucosa. Procurou a tia por mais de uma semana. Reviu a cidade depois de anos. Ainda podia movimentar-se nela com a memória. E encontrou a casa com a tia metida dentro, azulando o ar com a respiração velha. Não respondia ao menino. Olhava detrás dos olhos parados nele.


sábado, 6 de setembro de 2008

Rasuras


Dorothea Lange (EUA, 1895-1965).


girava o barulho dos saltos
cimento gasto
gostar desbotado
desconsolo ponteado no barro
carro de arrasto leve
seus meneios de garça
a mão delatava nas costas:
incidia caprichosa as pegadas mais duras

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Dito impopular


Edouard Boubat (França, 1923-1999). O menino.


numa tal vez
- improviso discreto –
longe foi o relâmpago
travessado pro alto
cegueira de lume
caída nas fuças

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Escrevendo com lápis de cor


Edouad Boubat (França, 1923-1999). Brasil, 1985.


a infância não escreve
desenha letras
desencontra mapas
reconta lugares
e não

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Sesta


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Rue Vavin, Paris.


Foi um baque. Só um. Pela janela a menina viu a semicúpula que cobria a cabeça. E o hálito quente do resto de respiração que vazava dela. Sentiu os rumores da casa nas palmas das mãos que seguravam o parapeito. Antes das vozes atingirem a rua era único o som do cansaço que chiava pelas pedras quentes.