Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

domingo, 27 de janeiro de 2008

Interior 5

Foto: Priscila Miraz. Encontro de Bandeiras. Folia de Reis, Assis, 2008.

O ar é cortado pelas fitas coloridas balançantes das violas. Ói o respeito, minino! E o menino cansado beija outra Bandeira. Qui deus ti bençoa, fiu, ri a Alferes da Bandeira acarinhando a cabeça da criança. As Companhias se apresentam e contam de um deserto palestino os lamentos, prolongados pela terceira voz, de um sertão americano. São muitos e variados nas cores, os três descendentes de Noé. E o dia é todo pedidos e agradecimentos. Os palhaços transitam livres pelas máscaras e pela pinga. Dançam batendo os pés e lutam com as espadas de madeira chacoalhando os embornais, tilintando as moedas. Moedinha pro paiaço, madrinha! As moedas rodam pelo chão e as botinas pisam duro, empurram, ganham e perdem na brincadeira. Ói madrinha, diz só o nome qué preu gravá qui no coração. E andando entre eles, que posam tão prontamente pra câmera, que se ritmam pelos bandolins, violas, violinos, sanfonas, pandeiros, fitas, imagens, bordados, flores de cores intensas e de plástico, que bebem e abençoam, descansam nas sombras das árvores o cansaço da festa que é trabalho e devoção, se entende que a melancolia e o lamento podem ser de uma particular alegria.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Chuvas

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). Río Cuja.

A casa escura da chuva é preta e branca. É uma das fotos da parede. Pequenas linhas de luz alaranjada vazam e denunciam a tarde caindo das nuvens cinzas. O sofá tem a marca funda do corpo e está quente, mas vazio. Molhado de chuva o gato lambe as patas depois de tremer as gotas brilhantes. Ele ignora o que se aproxima e olha o vazio, continuando na soleira da porta entre aberta. Entre aberto estava o mundo. Só um olho de gato vê o denso vazio de um mundo que se insinua.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

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Foto: Josef Sudek (República Checa, 1896-1976). Na catedral de San Guido, 1924-1928.


Férias em Pasárgada.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Interior 4: Cafe de Chinitas

Foto: Tomás Camarillo (Espanha, 1879-1954). Moratilla de los Meleros - Una calle.

A dona do xerox de uma esquina da avenida Dom Antônio viu dançar flamenco no Cafe de Chinitas. Parou com o livro aberto nas mãos, depois de xerocar o que pedi, sempre discutindo com a empregada. Repetia sem parar uns versos que sabia e queria achar: “Y yo que la llevé al rio/ creyendo que era mozuela” – é dele, sabe. Declamava teatral, chacoalhando insistente as unhas pintadas de dourado. O chuvisco já era chuva. Eu sem guarda-chuva. E ela satisfeita consigo mesma quase desfolhando o livro: Viu logo de qual poema eu vou gostar? É um belo Cafe, comprendeu? Sabe porque a Doña Juana enlouqueceu, lá no castelo de Valladolid? E a chuva entrava até as prateleiras de barbantes coloridos. Tentava pagar as cópias. Cercada. Acuada, ouvi pela terceira vez sobre o Cafe. Aí, sem tempo de brecar, disse que ela estava enganada, que o Cafe de Chinitas era verde e não tinha um único palco, mas vários pequenos ao redor do pátio coberto. Que foi na primeira mesa redonda logo em frente ao palco da esquerda, ao lado da coluna que iniciava os arcos e a fila de espelhos, que me sentei, bati o copo e os saltos, me defendi a cuchillo do descaramento do gitano pincho moruno e engrossei o coro das salerosas. Ela duvidosa de si mesma era ainda insistente. Mas a chuva diminuía a olhos vistos depois do meu Abre-te Sésamo, e com algum custo consegui pagar, já quando a conversa, numa tentativa desajeitada de reversão pela mesma estratégia, pendia a me convencer de que justamente Octavio Paz era colombiano.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Viajar

Foto: Sergio Larrain (Chile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.

Meu pensamento é feito do que o mundo me oferece.
No sonho tem um silêncio do mundo.
As palavras do sonho saem do que não fala.
Da gestação no objeto.
Depois vão pras bocas dos homens.
Mudam as formas.
Alteram as idades.
Descobrem o que ocultou a oferta do mundo.

Cada pedra posta em construção.

Dédalo também jogava dados.
Depois de presente, ser outra vez distante é vital.
No sonho revisito a cidade e ela pode então me falar.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Pausa

Foto: Jacque-Henri Lartigue (França, 1894-1986). Retrato com cigarro II, a atriz Gaby Basset, 1927.

Fumando um cigarro de palha tantas vezes adiado, me vi aí, suspensa. Por isso, pra mim sua casa agora se chama Posilipo.

O Besouro (trecho)

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem título, 1948.

Ela ergueu vagarosa o corpo da cadeira e se ajeitou na ponta do assento. O preto da carapaça do bicho refletia a luz que vazava pelas folhas da árvore defronte. Começou a empurra-lo com os garfos de um lado pro outro. Pressionava as asas. Empurrava. Numa tentativa de fuga frustrada, o besouro inverteu-se. Ainda mais frágil. O homem continuava a fumar em silêncio, mas franzia um pouco o cenho, o que provocou o sorriso da moça. Ela segurou o bicho levemente com as pontas do garfo na altura da cabeça e começou a sentir o corpo luzidio com a ponta da faca. (...) Em nenhum momento ele tentou segurar as mãos dela. Acompanhou, enojado e resistente. Ela sorria e acreditava muito científica que o crescimento era causado pela impossibilidade do grito. Um bicho que não podia gritar inchava mudo. Dividia seu regozijo entre o que causava ao besouro e ao homem, desordenada e cega.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Trânsito

Foto: Bill Brandt (Alemanha, 1904-1983). East Sussex, 1957.

Na aleatória composição do dia, o som invasor, por passagens mínimas, escorre escaldante preenchendo a fôrma do corpo. O som-cheiro, o som-gosto, o som-luz, o som-mudez: borbulha a mistura vermelha enquanto atravessamos a rua. Vivemos a passagem em ânsia de retenção. Assopramos pra que a lava seque, forme uma mínima sedimentação daquela luz cambaleante reflexa no rio. Em algum momento a cabeça tomba porque é preciso transbordar o sufoco.