Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Fátuo


Werner Bischof (Suiça, 1916-1954). A bailarina Anjali Hora, Bombay, Índia, 1951.


Estufo o peito
no trago
cigarro-de-palha
fogo-neblina
grunharpeja


na tumba corada
o desejar surpreendente
quindarfa.

terça-feira, 17 de junho de 2008

inerência

Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Polvo, Corfú, 1938

hoje ele apareceu sem o siso
entre os olhos e dizendo
que me vendo ler lá na mesa da cozinha
pressente envolvendo minha cabeça
um escafandro foscotransparente.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Lembrança do presente

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999).

Descida da rua (quando o próprio de cada caminhar se intensifica), percebeu o acento inscrito com a perna direita. Subitamente reavi (e no subitamente tantos reempossamentos poderiam caber) a sala do médico e as medições. Talvez uns milímetros de diferença encurtando a perna direita. Sugestão suficiente ao corpo que criou seu soluço no móvel. Curto suspiro de desafogo do peso todo que é ir. Entre as risadas o manquitola. Minha gagueira descoberta e transposta. No que é permitido contínuo no trato de esvair e reencher, o quebrado de tantas vozes. Retomadas outras. Exuberância invisível de repente apontada como uma cauda de pavão recolhida. Agora fui uma girafa manca.

sábado, 7 de junho de 2008

Interior 7: dos epítetos


Tomás Camarillo (Espanha,1879-1954). Poyos – Plaza.

Sofro do mal de ter gosto por lugares pequenos. Um gosto volátil. Ver as praças e vielas, as casas velhas e os quintais de cachorros modorrentos e estridentes, as feiras das sacolas desfiadas, os velhos do carteado e do dominó, as velhas das linhas coloridas, de crianças impertinentes e vergonhosas, as faltas e sobras dos adultos, o desequilíbrio, as árvores esquálidas e de fronda amarela de pequenas flores que me agarram no pulo da passagem. Vejo ser puxado do meu corpo um pequeno pedaço de melancolia destilada numa terrível inquietação. Nas capitais eu estou nos lugares enrodilhados. Separo e me segrego. Tenho minhas escalas de vivência. E o jogo de alternância entre elas é sempre arrebatado pelas sutilezas. Já aberto o portão de casa pra voltar da rua, escuto a Viúva do Italiano me chamando da esquina. Desce a rua com sacolas pesadas. Quer saber se eu quero manga. Foi até o parque municipal buscar das mangas pequenas que são as melhores. Entra na varanda e vamos colocando as frutas, que são pra mim e pro menino, no banco azul. E a mulher fala baixinho. Ela ri tranqüila e eu sou menina na rua. Os vizinhos são O Italiano, Os Filhos do Italiano, A Mulher do Italiano. O Gigante Violeiro, um negro enorme, sempre de chapéu de palha, que me põe medo quando tira as caixas de abelhas da vizinhança com as mãos e uma risada sem som: o rosto aberto num sorriso largo e calmo cercado de abelhas nervosas, visto debaixo pra cima, me paralisa. A Mulher do Colar, que depois descobrimos ser um colete pra coluna. A Bruxa Da Casa de Tábua, que joga urina do penico na rua. Pela Viúva do Italiano, soube que eu e minha irmã somos As Meninas do Dentista. Ela me conta dos bailes onde encontra os namorados e me surpreende. Aí também soube que eu cresci de alguma forma, também fora da casca, que agora sou a Viúva do Homem Vistoso, Mãe do Menino Loiro. Sou mais uma das mulheres que cria seu filho no feudo da rua. E que todo esse agregado descritivo próprio da nossa memória trovadoresca vai continuar.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Conjugação de expressões

Foto: Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). Rue Mouffetard, Paris, 1954.


- Deixa eu ver o que você escreveu?
- Nem que a vaca converse em vacatusseis!

domingo, 1 de junho de 2008

O cerco


Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956).


Sigilo rotundo bordejando o grito
magro de dizer da vida
querela de mim seguindo
mesmo corpo
passo
atrás do passo único
som seco
não retumba
cercamento de vida esvaída
no que eu grito.