Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Mar do interior


Edouard Bobat (Paris, 1923 - 1999). Nazaré, Portugal, 1956.

Afundado no bojo arenoso do casco
meu corpo é um trate da saudade longa
estirado estripado por tentáculos verdes de algas fundas
vago no convés entre as gentes
como movente e dispersa corda solta do alto
pendular
com a foto tirada lá do outro lado
imagino que agora estou no meio
e me parto em grito de vôo diviso
e me seguro firme na borda que deita ao mar
homem – silvo de vento louco
que a cada respiração oprime o peito
com a maresia excessiva do cérebro
rangendo entre os dedos a melancolia
espécie transeunte entre o barco e o que virá
me fecho do medo com os olhos no céu


Poema publicado em Caderno Literário: O imaginário do mar e do navegador, p. 47.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Passeio


Tina Modotti (Itália, 1896 - 1942). Calas, 1925.


Trago o cigarro

sopro em nó:

cavalo de três coices

em flores de sós

radiantes as brutalidades da rua:

cavalgaduras de arame dos portões

sirenes contra os donos mesquinhos

pulos secos de rosto virado

trago o cigarro

cuspo o amargo:

garganta dura olho lágrima

nalgum buraco de calçada remendada:

flores sós.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

chamado


Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). Rostro.


seu nome no meu grito
vem alto como a tempestade lá de fora
atravessa os sentidos
com os pés de menino de peito aberto
correndo sem eiras nem beiras

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Andando com olhos tapados


Edward Weston (EUA 1886-1958). Tina Modotti.


as coisas quebram
ao menor sinal do meu cílio
da dobra em ziguezague da calça na cadeira

as coisas quebram no repente
da torção do pescoço pra trás
do ínfimo gole de água

as coisas quebram meu fêmur
no pulo cego da janela da cozinha
na falta grave de sonho e nuvens

as coisas quebram meu fêmur
na esqualidez de fome do olho
no acordar morno ainda da falta

na lâmpada fina da sala
as coisas rasgam meus músculos
e de sobra um estilhaço da veia aorta

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Eu sei que vou te amar


Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002).
o que não diz

o que vem sem barreiras do seu corpo
vagueia no cotidiano com formas moventes
serpenteando os afazeres
seguindo os olhares com contornos frágeis
(a fragilidade das certezas)
os medos e as agonias
a vida informe e translúcida dos em tornos
fazendo seu caminho de águas escuras
por entre os amores as raivas as mágoas
por entre os tendões de felicidade dos corpos
guardei o movimento dos lábios
o movimento das falanges tão dobráveis

sempre está dito

terça-feira, 21 de julho de 2009

Trecho de conto 2: Como montar um homem


Man Ray (EUA, 1890-1976). Max Ernst, 1934.

Trago o último gole no balcão do bar. Ainda o mesmo dele, talvez mais de cinqüenta anos antes. Eu visito. Eu voltei por dias. Anos afastados guardados em um bolso, amarrotado. Um endereço dado pela mãe: se quiser aparecer por lá. Ela morreu. Também me vem agora guardada desconhecida desenvolvida à espreita. Ela morreu velha. Tenho dela uns sonhos de pular de pára-quedas com a fobia de altura que terei de emprestar do seu temperamento. Viajar cem dias e cem noites de trem, com a cara na janela sem dizer palavra, como viajava de ônibus: em ônibus, sucumbia a um encadeamento de monossílabos irresistível. Podia ser dura. Tinha amnésia da maternidade com certa freqüência. E era nesses lapsos que mais me ajudava a montar um homem. Porque era dura e não tinha pena de dizer, cruas, as palavras de descrever.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Café da manhã


André Kertész (Budapeste, 1894-1985).


São os sons que amanhecem os olhos. Os menores. Os grudados na massa das casas. Que só se aumentam para acordar viventes desavisados. Eles me acordam e eu vou até a mesa, até a cozinha ainda feita dos sons sem tempo. A suspensão diante da mesa, esse pequeno não-tempo do meu acordar, é tão povoado das coisas menores que me perco no tumulto. Quando minha mãe espreguiça no corredor e me vê pequena, parada diante da mesa sem toalha, me olha como se eu fosse sonâmbula, como se eu não fosse quem eu sou. Mas aí eu olho pro rosto dela e digo alguma coisa curta e baixa como os sons que acordam meus olhos e ela volta a me olhar como se eu fosse eu. Da matéria que ela usou pra me fazer. E sendo outra vez familiar, ela deixa o assombro voltar pro lado de dentro das órbitas, deixa as pálpebras caírem até o meio dos olhos claros, feitos vítreos pela luz da janela, e me dá o olhar suspirado de quem ainda tem que fazer meu café. Eu desgosto dessa volta.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Amante


Herbert List (Alemanha, 1903-1975).Muro al anochecer, Hamburgo, 1930.


o olho preto sem fundo que brilha seco
revirando por trás do que minto
te guarda de mim
te afoga em mim
te voa a asa longa
demorada em terminar um movimento
exata no tempo de alcançar
seguro na frase o invisível que te escapa
e esbarra na pele da garganta
pele que movo com as mãos certas
seguras só ali e não por certeza de saber
porque nunca te sei
nem te afirmo no que já foi
mas tenho em momentos díspares
o soluço que guardou teu ouvido no primeiro dia

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Fado


Jacques Henri Lartigue (França, 1894-1986). Renée, Paris, 1931.


Sem maiores surpresas me vi parada à tua porta
Don Juan de saias e rosa branca
ouvindo tua voz dizer enquanto abria o portão:
Eu sabia que você vinha.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Casal


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Elisabeth y yo, París - 1931.


com cada lance de cal
docificação de abóbora na pia,
as mãos velhas dela.
na parede recém seca
com dedos duros rachados
o velho também branco:
divagações esmeradas nas mastigaduras firmes do fumo.
mais um pouco de fundura na voz
mais um tanto de pó no olho
um dó largo em goela inchada,
e o caminho frouxo na decisão:
ora aqui ora ali
nunca único de cegueira amorfa.
um desejo é mais forte que a voz a dizer dele,
que joga.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Trecho de conto: Como montar um homem


Man Ray (EUA, 1890-1976). Max Ernst, 1934.


Trago em algum canto a memória. Desconhecida, desenvolvida à espreita. Posta aos meus poros interrupta. Posta diante da minha cama numa cópia de Miró, enorme papel amarelo com som e tato de lixa e com a assinatura desse copista justo que posso já reconhecer. Ali mais que na voz da fita que brinca com os balbucios que, me dizem, são os dos meus três meses de nascido. Antes de mais nada, o que sei é que as coisas que gosto de fazer ele faria comigo. E tenho em mim o dele. Junto comigo pergunto: como se monta um homem?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Sono do menino


Carlos Pérez Siquier (Espanha, 1930). La chanca.


a buzina acordou
só o olho do umbigo:
o quadril dançou no lençol
com suspiro de sonho

quarta-feira, 6 de maio de 2009

porto


Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998).


roldame arquejado pelo peso
o solo de assobio fino do menino
o barco rangente
o coração em falha de batimento
segmento árido no meio do mar
água fria de fundura minha
o porto do outro lado guardado na foto
eu vou pra lá
seria sério o vôo da gaivota
um vendaval de ondas marés
de polvos de braços roxos ao redor do meu pescoço
lânguidos os braços
da última prostituta acordada no cais
meus dedos de pó ardem no meio das pernas
e sigo
soltos os olhos em baços gemidos
o menino assobia e corre do homem gordo
o barco zarpa lento e velho
pintura verde grossa de camadas longas
a prostituta cospe e anda sem a bolsa
eu beijo o assoalho cambaleante que me leva

domingo, 3 de maio de 2009

Depois


Pierre Verger (França, 1902-1996). Andalucía, 1935.


as solas dos pés sentem
a poeira do chão do quarto
granulado das palavras
caído como pó de pedra
fricção da minha língua
contra o muro da sua cara
e amanheceu alguma luz
transmutada pelos vãos da cortina
o quarto é o mesmo em seus pertences
outro sem a respiração azul
sem os cabelos curtos
e as mãos secas nos gestos
as solas dos pés sentem
o frio do assoalho
descem da cama em falso
cambaleio em retardo
dolorido por saber:
depois do café a boca vai sorrir

terça-feira, 28 de abril de 2009

Primeiras horas


Fabiana Miraz. Cupe, Pernambuco, 2008.


nunca acordava seca:
fora da cama
andando pela casa
pré-vinha aos passos
murmúrios de águas

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Espera do fim do dia


Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Rosas, 1925.


encostada na borda do chafariz seco da praça corria um giz no ladrilho vermelho ia e voltava ia e voltava a luz diminuía oca na surdina do céu e o vento acompanhava as voltas da mão dela segura e distante no fundo do olho no ponto cego do olho engolia uma pequena mágoa um pingado de ciúme que distraía no vazio do movimento gago que ia e voltava ia e voltava o giz acabou junto com o dia dilatando o ponto cego do olho jorrando o ciúme em espumas de leite em cólera amorosa de negativas impossível continuar encostada ali levantou assegurando a curta faca na cintura de elástico da saia florida não viu a lua amarela que subia em suas costas quando começou a tropeçar os passos pra fora da praça pra dentro do corpo do amante

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Passagens


Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932).


derreto aqui
os pedaços de sabão
sobrantes dos banhos infantis
deixo na forma colorida
os riscos minúsculos
das palmas
grudado na bola
junto do suor pueril
das axilas antes dos beijos
dos dedos intrusos e esperados:
objeto de caixa de fundo de armário
pleno de digitais

terça-feira, 7 de abril de 2009

discussão


André Kertész (Budapest, 1894-1985) Distorsión 34, 1933.


andava quase em cambaleio
sentiu quando a bolha estourou fez uma parada ligeira e descalçou a sandália
o suficiente pra ver uma pequena marca vermelha difusa baça tinha esquecido os óculos
a tarde estava quente
já não fazia questão de fingir compostura sabia das costas arcadas dos ombros caídos do andar arrastado piorado pela bolha
pesava
olhou para trás e seguiu com os olhos o caminho do visco opaco cheio de rasgos em seu interior que vinha do portão até seu calcanhar
só cinco quarteirões bastavam cinco quarteirões onde ser a lesma que passava e voltava mais nada pela janela da manhã que tinha sido já quente como a tarde olhando pela janela tinha guardado o sorriso sem sabor da última foto
a última foto
a última foto
e onde mais andaria senão ali nos cinco quarteirões senão naquela mesma cidade onde se escondia da vida
você pôs o envelope no correio ele sempre perguntava se tinha feito as coisas porque sempre
sempre
sempre
esquecia de fazer as coisas as coisas mais bobas esquecia mas sabia onde procurar o que fosse de pensar pensar
pensar e nunca saber no quê depois de quinze minutos
depois de quinze minutos já estava em outro lugar espaciado tão diferente que as pessoas dela já eram tão outras que deviam ser assim quando se pensavam
deviam ser daquela matéria de visco como ela que rastreava e encontrava a mesma princesa que dormia
e dormia depois de fazer as unhas vermelhas e dizer a ele antes de sair que
de tantas coisas a dizer o que não se esquece e persiste são as enormes reticências
estamos nessa casa há três ou quatro meses e ver as coisas se quebrarem tornarem a se juntar
se estabelecerem de maneiras diferentes deixa todas essas reticências vagando sem serem ditas
a solidão imensa
e que precisam de algumas horas da tarde para perderem o rumo
toda a madrugada tantas cores ventos e uivos
neblina espessa às vezes outras chuva fina que o corpo sequer sente
uma bela coberta por véu de gaze
um corpo lascivo se debate em meio aos livros da mesa até chegar à toda sua umidade branca
dilaceramento e ódio sorriem através das pernas abertas

terça-feira, 10 de março de 2009

indo leve


Dorothea Lange (EUA, 1895-1965).


indo leve
de um tempo teu
abre meus dedos
- pequenas agulhas de medo –
e roça a palma funda
guarde o sussurro que vem de lá
guarde a palavra inventada pra você
fátua
feita de um tempo meu

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Natural


Walker Evans (Estados Unidos, 1903-1975). Wahstand in the Burroughs House,Hale County, Alabama 1936.


lamúria vinda com vento
e café
da velha da casa da esquina
a velha casa da esquina
decompondo musgo e visco
pelos dentes podres
da velha
da lamúria da casa vazada
do cheiro verde do corpo parado
da umidade do chão de café
aos olhos da velha chegam
humores passados nos vãos desacordos
nos desalinhos pregressos
daquela que foi a vida na casa da esquina

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Jano


Grete Stern (Alemanha, 1904-1999) . Made in England, hacia 1950.


é nesse corpo de lodo
o olho que te guarda
a fagulha que ateia
vendaval na sala de estar
a noite densa cerca
faz bruma pelas janelas
pelas portas
desnutre o carnoso do viço
mostra do outro lado
o rosto vicioso
escancarado

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

faze dor


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Autorretrato, 1906.


olhar quebra súbito
sem precedentes notórios
na parede-chão
dos trançados de capim-de-cavalo
da capoeira rala
cacos esquivos
buscam entradas mínimas
do outro lado:
desrefeito

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sem se desvencilhar


Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). México, 1934.


em seqüência rodada
a dita promessa desnecessária
rodopio sem noção da chegada
meu dinheiro colorido em cima da mesa
moedas ali de cobre
o homem na cama sem coloração

sábado, 3 de janeiro de 2009

Como montar um homem


Edward Weston (Estados Unidos, 1886-1958). Untitled Tree Study.


pele-réptil descansa pousada
os músculos em sonho
são mobilidades em contínuo
mesmo depois de morto
o rosto é forjado quieto
e uma mão de dedos duros
está aberta sobre os olhos