Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

terça-feira, 21 de julho de 2009

Trecho de conto 2: Como montar um homem


Man Ray (EUA, 1890-1976). Max Ernst, 1934.

Trago o último gole no balcão do bar. Ainda o mesmo dele, talvez mais de cinqüenta anos antes. Eu visito. Eu voltei por dias. Anos afastados guardados em um bolso, amarrotado. Um endereço dado pela mãe: se quiser aparecer por lá. Ela morreu. Também me vem agora guardada desconhecida desenvolvida à espreita. Ela morreu velha. Tenho dela uns sonhos de pular de pára-quedas com a fobia de altura que terei de emprestar do seu temperamento. Viajar cem dias e cem noites de trem, com a cara na janela sem dizer palavra, como viajava de ônibus: em ônibus, sucumbia a um encadeamento de monossílabos irresistível. Podia ser dura. Tinha amnésia da maternidade com certa freqüência. E era nesses lapsos que mais me ajudava a montar um homem. Porque era dura e não tinha pena de dizer, cruas, as palavras de descrever.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Café da manhã


André Kertész (Budapeste, 1894-1985).


São os sons que amanhecem os olhos. Os menores. Os grudados na massa das casas. Que só se aumentam para acordar viventes desavisados. Eles me acordam e eu vou até a mesa, até a cozinha ainda feita dos sons sem tempo. A suspensão diante da mesa, esse pequeno não-tempo do meu acordar, é tão povoado das coisas menores que me perco no tumulto. Quando minha mãe espreguiça no corredor e me vê pequena, parada diante da mesa sem toalha, me olha como se eu fosse sonâmbula, como se eu não fosse quem eu sou. Mas aí eu olho pro rosto dela e digo alguma coisa curta e baixa como os sons que acordam meus olhos e ela volta a me olhar como se eu fosse eu. Da matéria que ela usou pra me fazer. E sendo outra vez familiar, ela deixa o assombro voltar pro lado de dentro das órbitas, deixa as pálpebras caírem até o meio dos olhos claros, feitos vítreos pela luz da janela, e me dá o olhar suspirado de quem ainda tem que fazer meu café. Eu desgosto dessa volta.