Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sentenciada


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Parco dei Mostri di Bomarzo, 1952.


à moda dos antigos castigos:
uma mancha de nascença
enorme mapa avermelhando desventura
carregado nas costas
estigma queimado no útero
mão indelével das tragédias
em cada sorriso o bafejo de Queres.

domingo, 26 de outubro de 2008

Gravura


Hildegard Rosenthal (Suíça, 1913- 1990). Lasar Segall, 1939-1941.


Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava. Pela persiana torta da janela entravam os sons e a força do calor da tarde modorrenta. Vivia onde os homens não têm rosto. Os abraçava pouco. Por uns trocados a mais abraçou o homem a pedido do estrangeiro. Era sempre o seu rosto de frente. Ele queria o seu rosto em preto e branco. Com todos os traços agudos. Zelita se explicitava. Os olhos olhando. O estrangeiro tirava o bloco do bolso da calça e rabiscava o abraço. Um vulto de costas. Uma nuca suava. Um corpo a mais no Mangue. Eles moviam os membros com lentidão. O ar pesava. O silêncio. Salvava os latidos dos cachorros. Um uivo. Uma briga. Ainda estavam no mundo. Depois passava. Os outros quartos murmuravam. As coisas que diziam escapavam. Os pensamentos da madrugada. O que devem pensar os mortos. Zelita pensava os mortos. O vulto do abraço enxugou o rosto num lenço amarrotado. De costas. Esquivou pela porta aberta. Devia se imaginar vivo. Mas Zelita ouvia o que pensava. Ajeitou as alças do vestido molhado de suor. Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Composição sobre a frase do filho


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Livro de Elisabeth.


quando escuto os seus pés
colando e soltando em estalidos
da madeira do chão
(soluços descalços)
quando abre a água do banho
sendo a chuva da casa no meio da tarde
forja o tempo preciso;
contrito
ultrapasso o trópico do corredor
chego ao canto da sala junto à mesa
estendo o corpo no mosaico dos seus coloridos
pequenos pedaços da imaterialidade que é você
secreto te componho e me aposso:
seu mundo faz festa comigo.


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Notas cotidianas


Horacio Coppola (Argentina, 1906). Buenos Aires, Frutería, 1936.


Anúncio de loja de mel, Buenos Aires:
“La lengua es la peor parte del cuerpo: adúlcela”

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Visão


Grete Stern (Alemanha, 1904-1999) El ojo eterno, hacia 1950.


criança vê com as mãos
solução das mãos pro desconfiado
cambaleante pelas imagens cotidianas
olhos-faringe esgotam
amparo os olhos com as palavras das mãos

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Assassinato


Bill Brandt (Alemanha, 1904-1983). Campden Hill, London, 1949.

depois de limpar os cantos da boca
no guardanapo de pano
matou
sem o aconchego da tristeza
(sua existência)
tinha à frente do corpo
a fria figura de um homem comum

sábado, 4 de outubro de 2008

Interior 9


Tina Modotti (Itália, 1896 - 1942). Madre e hijo, 1929.


Refugava transeunte a caminho. Perninhas encaixadas no quadril floral. Berrando feito bezerro desmamado. Coando o amargo com a voz de calmaria. A mãe. Reconhecida e gastada. Boi boi boi. Boi da cara preta. E o boi não pega a criancinha. Cortaram o pasto. Tem asfalto. O menino a cavalo leva os bois mais longe. Atravessa o canteiro da avenida nova. O fio fino continua. Boi boi boi. E o bezerro desmamado. O carro buzina. Céu de fim de tarde.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Adeus


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Phoenix Recumbert, 1968.
Conto publicado em A Garganta da Serpente.

E não é por não te querer mais. Só que a única coisa possível de te dar por algum tempo é esse rosto seco e duro que restou depois de metido no chuveiro e onde talvez tenha me permitido alguma lágrima. Não é por mérito ou por força ou por fraqueza. As medidas só existem como tentativas de definição e eu sempre busquei em você as sobras que não cabem, aquela última luz laranja do dia que por descuido a gente olha e não guarda e segue. Não é pelas mulheres. É por descaso das palavras e dos gestos, esa arquitectura de la nada, encendiendo sus lámparas a mitad del encuentro. Não é raiva. É decepção por saber que seja qual for a decisão que tome por você, será aceita sem uma palavra que me contradiga. E o que restar não passará de um desconforto, um incômodo, uma pequena pontada no seu estômago que os afazeres do dia farão esquecer e que por qualquer motivo sutil a memória trará em relâmpago, deixando o esforço por se lembrar dos restos perdidos. É por me recusar a ser a única doadora. É por não ser capaz de me recolher no teu abraço sem ter já a boca pronta pra dizer que vai embora. E não é por estupidez que as minhas esperas patéticas e inúteis ainda vão durar por algum tempo. Mas é por falta talvez, que você não esteja entendendo esse adeus.


Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Fechou o portão e não parou depois de trancá-lo para ver os passos que iam pelo asfalto cheio da garoa da madrugada. Tomara, tomara que não. O sinal gritava sempre um minuto antes, sempre roubava o minuto e isso era imperdoável. Logo depois o inspetor que acabara de soar o sinal já estava parado olhando pra cara de todos com um dos ombros encostado no batente da porta, com a lista das classes e os horários das aulas nas mãos conferindo quem estava, quem faltava, resmungando de mau humor e aumentando o dos outros que já não era pouco aquelas tantas da tarde. Era sempre aquilo e ainda o engolir do café frio no copo de plástico, atravessar o pátio pensando que podia ser melhor, que um dia vai ser melhor senão não vai dar, senão se perde, e o perder e ganhar ali era uma trama, um conluio do qual sempre se participava e do qual sempre se era externo. Boa tarde. Eles ouviram ou não. E aquilo era uma relação humana. Humanamente bruta. O caminho percorrido por anos com chuva com frio com muito calor com alguma esperança triste, la tristeza que tuvo tu valiente alegria. Uma valente alegria encerrada em envelope verde e jogada em frente àquela porta. Na última tarde antes das férias fez meia-volta no caminho da casa e buscou pra si uma rosa. Voltou A Moça com a Flor, de mãos envelhecidas com uma rapidez que foi capaz de assustar e constranger o amigo por dois anos distante. Assustar e constranger. Uma espécie de Ms. Delloway, editora da história. Complicadora da história. Entrando pelo portão voltou até a madrugada anterior e Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Tomara, tomara que não.