Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Desencontro

Foto: Horacio Coppola (Argentina, 1906). Nocturno. Calle Chile y Bacarce, 1936.


Senti o sorriso se fazer sem graça. De uma evidência constrangedora, o meu descontentamento. Inclinei o rosto. Brinquei com o chaveiro nas mãos. Ajeitei no ombro a alça da bolsa. Mas ele me seguiu os gestos. Os olhos sempre em mim. Pressentiu minha intenção. Não me deixou fugir. Fiquei aflita e translúcida. E foi proposital. Aqueles segundos imensos pra me dizer que ele sabia. Acredito agora que até da pungência dos meus sonhos repetidos ele soube ali. Queria que ele dissesse alguma coisa que me permitisse ir embora. A boca se apertava mais e mais. Lia na minha impaciência crescente, naquele pequeno espaço de uma esquina, que o meu desejo era outro. Ouvir de outro. Quando respirou fundo e fechou os olhos, eu petrifiquei: soube. E agora diria em voz alta o nome que guardo. Não. Pediu desculpas pelos elogios. Ainda dizendo as últimas palavras, deu meia volta e seguiu na direção da praça. Eu voltei pra casa sem comprar os ovos.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Sobre gatos

Foto: Carlos Pérez Siquier (Espanha, 1930). Almeria, La Chanca.


Talvez comece a chover, por isso vi o gato rondando a casa, procurando algum vão pelo qual pudesse passar e se esconder. Da chuva e de mim. Chegava da rua e vi aquele andar agachado de soldado camuflado espreitando minha janela. Com o ranger do portão ele nem olhou pra trás. Correu do jeito engraçado, as orelhas deitadas. Ele não tem nome. Tem vários e nenhum. Impossível buscar algum canto da vida sem encontrar um gato. Na infância, muitos. Começou com a gatinha preta de rabo torto que mudou comigo pra casa ainda em construção. Ela com algumas semanas, eu com seis anos. O último foi Renard. Um gato de patas curtas e focinho estreito. O rabo longo e espesso. Os pêlos compridos como os de um persa, mas igual a um siamês nas cores. Dos pêlos e dos olhos. Os olhos azuis. Eram estalados. Assustados. Pra mim, era uma raposa que se coloriu diferente. Quando me mudei, quis que ele fosse junto. Ele ressabiou. Preferiu as visitas perto das cinco da tarde. Comer comigo queijo fresco com café. Minha barriga crescia. Renard continuava ressabiando. Até que sumiu. Da minha casa e da casa da minha mãe. Quase visinhas. Antes, fez xixi no livro do T.S.Eliot que estava na minha cabeceira, mas que não era meu. Via seu andar de raposa nos telhados a minha volta. Apareceu uma gatinha siamesa na casa da minha mãe. Quando alcançou idade, engravidou do Renard. O filho é esse que agora me ronda. Que não dei nome. Não adotei. Os que conheciam, disseram que o Renard morreu. Comigo ficou como reflexo olhar sempre pros telhados toda vez que me sinto observada.

sábado, 25 de agosto de 2007

Interior 1

Foto: Inge Morath (Ástria, 1923-2002) Niño llevando hogada de pan. Pamplona, 1954.


Nostalgia do passado. Antigamente não foi melhor. Era. Como agora é. Coisas boas, outras nem tanto. As horríveis. A idéia de um paraíso no passado persiste. O paraíso no desconhecido. E nada mais desconhecido que o passado. Com muita liberdade, ou pouca, a gente sempre inventa. Aí invento um tempo e uma vida pra preencher esse tempo inventado. Quando enrosco mudo o rumo. No interior o espaço pro improviso se estende. O amigo sempre mora perto. E no interior, visitar amigos ainda pode ser de um estalo. Não precisa marcar hora. Vai. A pé. E leva o pão, porque café sempre tem.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Inaudito


Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986) Barda tirada en un campo verde.

Alguns nomes não são possuídos. Ultrapassaram a posse e carregam as nossas saudades que não sabemos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Imagem

Foto: Paul Strandt (Estados Unidos, 1890-1976). Window, Daliburgh.


A casa. A porta lateral está aberta. O ar é denso do silêncio povoado. O calor e os rumores do meio do ermo. É cortante o ranger dos bambus gigantes. Eles ladeiam a casa. Dentro é escuro, úmido, frio. Cheira a madeira molhada. Sempre. A cozinha é quase toda a casa. A mesa grande. As cadeiras descompostas pelo espaço. Utensílios. Livros abertos e fechados. Os pratos sujos. Panos. Óculos. Frutas. As flores apanhadas. Partes do silêncio. E também o arrastar da escova nos cabelos. Ele está em pé, atrás dela que está sentada muito ereta num banco, e lhe penteia os cabelos. Grave. Ela se move involuntária. O puxar que a escova lhe inflige ao pescoço. Não dizem nada. Bem à frente dela, uma janela pequena aberta de par em par. A mata no horizonte se revira com a ventania. Acompanha o cinza escuro da tempestade que chega. Ela quase não respira. É calmo o olhar que vê a aproximação da tempestade. É ainda curioso e encantado. O mesmo olhar que vê a cena vivida.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Vício literário

Foto: Bill Brandt (1904-1999). Corner table at "Charlie Bwown's", 1945.

Veio lá de fora pisando duro, o rosto ainda vermelho da discussão. Estacou entre os batentes da porta, olhou pra todos e esbravejou:
- Ciúmes! Inventou agora um ciuminhu besta e fica me aporrinhando!
Repentinamente virou em direção ao portão e gritou:
-Vá ler Dom Casmurro! Vá ler Otelo!

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Do que esqueço

Foto: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem Título, 1949.

Sempre dos gestos mais pessoais. Dos trejeitos mais repetidos. Esqueço dos meus modos nas situações. Das mãos na cintura quando converso em pé, e de como ergo o rosto pra soltar a fumaça do cigarro. Quando me descrevem, dizem do que mal percebo e do que é o menos passivo em mim. No descuido que o esquecimento permite, a restrita liberdade escapa. E os defeitos e falhas tão mal escondidos, os palavrões, a falta de tato, a evidência do cansaço, o excesso de cuidado, os pequenos melindres, a falta de paciência. Tudo bem figurado na descrição. Encarnado. Quando me chamam a atenção, perco o ritmo, tropeço e fico manca. Demoro a acertar o passo outra vez. A espontaneidade é coisa frágil.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Do encantamento das palavras

Foto: Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Bryonia Alba.

O significado é o que ocorre. Quando antes de entender é lugar de encanto, abrimos pro deslumbre: o som que as palavras fazem, algumas antes da boca, outras na delícia do dizer. E concordo com a história dos círculos. Dos entornos. Sempre composição. Tinta, forma, som, e aí, já um mundo todo. Quando começa a entrar luz pela janela, ele me diz: acorda agora porque já diaceu.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Sal

Foto: Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Pecera, Santorini, 1937.
São vários saltos. É a angústia de ter nítida a relação especular do tempo. Todas as suas imagens, todos os seus mundos acontecendo corpórea e mecanicamente. Concomitantes. Eu sei que foi um acidente desses que são comuns na infância. Eu sei, mas eu tremo. Do tremor abissal vêm os pedaços assentados. Eles voltam. Duas vezes, eles voltam. De todas as imagens, a mais terrível volta. E o medo que ela trouxe quando aconteceu. Um medo que é tantos medos quanto são os tempos de uma hora. E o pobre corpo desnorteado só sabe desobedecer. Desobedece ao menino, aquele pedaço de braço que se pendura. Era só uma brincadeira. Um golpe de luta de mentira. Não precisava tanto. Desobedece o meu corpo que se torna resistente e carrega o menino, quando o coração desfalece pálido. E desobedece ainda outra vez, essa estranheza, quando deve permanecer firme diante das aplicações de anestesia local na carne aberta, a agulha entrando no vermelho vivo, o líquido inchando e soltando água do braço aberto do menino. Essa é a primeira volta dos pedaços. A mais rápida. A que atordoa. Depois que o menino dormiu veio a segunda. A que começou quando fui trancar a porta da cozinha e vi no quintal os bichinhos de borracha arrumados nas filas da brincadeira. É nessa segunda volta que acontece a nitidez do encenado. E foi como sentir outra vez entre as mãos a vibração do eco, do estalo seco de dentro da cabeça do marido morto. Desmarquei todos os compromissos da semana. Olho pro menino quando ele não me vê. Enraiveço diante de médicos e advogados pelo mesmo motivo e com a mesma indignação de quatro anos atrás. Maldigo a dependência desse saber que não domino e que me abusa e que faz sofrer. Penso nisso que é a nossa vida e que toma formas tão estranhas a nós, formas que vão se parecendo conosco conforme convivem na memória. Olho pro menino e digo que ele é um doce. Prontamente sorri de lado, uma sobrancelha levantada e responde que sim, que é um doce, mas que às vezes, é salgado.