Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Casal


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Elisabeth y yo, París - 1931.


com cada lance de cal
docificação de abóbora na pia,
as mãos velhas dela.
na parede recém seca
com dedos duros rachados
o velho também branco:
divagações esmeradas nas mastigaduras firmes do fumo.
mais um pouco de fundura na voz
mais um tanto de pó no olho
um dó largo em goela inchada,
e o caminho frouxo na decisão:
ora aqui ora ali
nunca único de cegueira amorfa.
um desejo é mais forte que a voz a dizer dele,
que joga.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Trecho de conto: Como montar um homem


Man Ray (EUA, 1890-1976). Max Ernst, 1934.


Trago em algum canto a memória. Desconhecida, desenvolvida à espreita. Posta aos meus poros interrupta. Posta diante da minha cama numa cópia de Miró, enorme papel amarelo com som e tato de lixa e com a assinatura desse copista justo que posso já reconhecer. Ali mais que na voz da fita que brinca com os balbucios que, me dizem, são os dos meus três meses de nascido. Antes de mais nada, o que sei é que as coisas que gosto de fazer ele faria comigo. E tenho em mim o dele. Junto comigo pergunto: como se monta um homem?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Sono do menino


Carlos Pérez Siquier (Espanha, 1930). La chanca.


a buzina acordou
só o olho do umbigo:
o quadril dançou no lençol
com suspiro de sonho

quarta-feira, 6 de maio de 2009

porto


Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998).


roldame arquejado pelo peso
o solo de assobio fino do menino
o barco rangente
o coração em falha de batimento
segmento árido no meio do mar
água fria de fundura minha
o porto do outro lado guardado na foto
eu vou pra lá
seria sério o vôo da gaivota
um vendaval de ondas marés
de polvos de braços roxos ao redor do meu pescoço
lânguidos os braços
da última prostituta acordada no cais
meus dedos de pó ardem no meio das pernas
e sigo
soltos os olhos em baços gemidos
o menino assobia e corre do homem gordo
o barco zarpa lento e velho
pintura verde grossa de camadas longas
a prostituta cospe e anda sem a bolsa
eu beijo o assoalho cambaleante que me leva

domingo, 3 de maio de 2009

Depois


Pierre Verger (França, 1902-1996). Andalucía, 1935.


as solas dos pés sentem
a poeira do chão do quarto
granulado das palavras
caído como pó de pedra
fricção da minha língua
contra o muro da sua cara
e amanheceu alguma luz
transmutada pelos vãos da cortina
o quarto é o mesmo em seus pertences
outro sem a respiração azul
sem os cabelos curtos
e as mãos secas nos gestos
as solas dos pés sentem
o frio do assoalho
descem da cama em falso
cambaleio em retardo
dolorido por saber:
depois do café a boca vai sorrir