Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sábado, 22 de dezembro de 2007

Imprevisto

Foto: Edouard Boubat (França, 1923-1999). Paris, 1951.


- Mãe, lembrei das minhas lembranças!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Uma casa


Foto: Mariana Yapolsky (Chicago, 1929-2002). Falda huichola, México.
Este conto foi publicado no jornal literário de Curitiba, Rascunho: http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=4&lista=1&subsecao=12&ordem=1709

De pranchas de madeiras largas e finas, dobráveis, é aquela casa. Olhando da rua se atravessa ela toda, em sua umidade, em seu aleitamento manso da vida, em sua porosidade desavergonhada de existência em composição. Vê-se através dos vãos. Redoma de ar no meio do quarteirão do sertão. Engenhosa em enganar o entendimento do tempo. Algumas paredes já não existem e, à revelia do tempo, alguns móveis ainda estão. O banco sujo de pernas serradas da velha ainda estava. Frente à cama. A cama não mais. A avó deve ter se sentado ali tantas vezes. Sentava ali com cansaço morno de indiferença. Dobrou o corpo e olhou o chão de terra batida mais de perto. Encontrou uma carreira de formigas grandes. As meninas que nasceram na rua contaram que foi através das largas frestas que viram o vidro e a moça. Tudo contado com o devido sussurro. E nos gestos do segredo, uma mímica atroz das conversas adultas. Tudo prostrado dentro. Uma incômoda indignação frente aquela ausência que não entendia. Foi sendo criada sem barulho. E agora é o tudo momentâneo de seu peito. Foi se estendendo até ser. Neutralizou. E agora sem mais: era. Tinha passado pelo arrebatamento daquela paixão, e agora relembrava uma história alheia como quem pesca uma salvação, olhando fixo uma carreira de formigas grandes, de corpos fortes, pretos e patas vermelhas ariscas. O meio da carreira. No meio de um lugar onde jamais esteve. E a história volta como se fosse dela a dor nas entranhas. Queria uma dor assim. Era incapaz agora de uma dor assim, e isso era atordoante. Lembrava querendo sentir e distanciar o enjôo que vinha de sua própria vida anestesiada. Bichos e escombros se camuflam ali. O boldo se agita no vento e desprende seu cheiro enjoativo. E os cravos amarelos lá no fundo, perto do muro, refletem alguma luz que passa. Os lagartos correm entre a vegetação rente aos muros, a maioria, marias-sem-vergonha rosas e brancas, aos montes. Na calçada ainda velando, um chapéu – de – sol de antes de tudo, alto e cheio, sombreia e proíbe de nascer o que precise de sol. Os morcegos voam por ali nas noites por causa de seus coquinhos verdes. Os meninos brincavam por ali nas manhãs por causa de seus coquinhos verdes. E foi nas algazarras de uma manhã de domingo, quando a viola chegava ao fim da moda, que se confundiu em meio aos uivos da ventania e chiados da rua, pregão de sorveteiro e conversas de velhas que voltavam da igreja, o grito sufocado da moça da casa. Passou como o assobio do vento. Alguns pensaram ouvir alguma coisa, pararam atentos. Depois nada. Um chorinho de gato continuou a ladainha. Sempre muitas ninhadas de gatos ali entre as touceiras de erva-cidreira. A rua continuou. As mães gritaram o almoço. E a moça chorou e sangrou na cama. Junto dela, a avó que lhe tinha aliviado o peso do corpo e o medalhão de lata do batismo, com a imagem do anjo da guarda, pendurado com fita branca encardida da terra vermelha, na parede sobre a cama. Ficou doente depois, não quis enterrar a carne que lhe saiu na hora do grito. As meninas juraram que ela guardou em um vidro grande de conserva de palmito, ao lado da cama. Ajoelhava na frente e ficava olhando, movimentando o vidro, os olhos mortos, estatelados, a pele amarela, sombreada pela luz do toco de vela. Morreu logo. A avó enterrou o vidro junto.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Capital

Foto: Berenice Abbott (Estados Unidos, 1898-1991). Court of the First Model Tenement, 1936.
Depois do segundo metrô os rostos são ilusões de familiaridade que não se cumprimenta: espreita e imagina. Não ignora. Os mais à vontade detém o domínio da conveniência do cinismo. Mas não se ignora. É sofrido nos ombros, nos joelhos, no pescoço, nos punhos, nos tornozelos, nas falanges, esse reconhecimento, esse desdobramento. Depois desce na estação da Sé. O mundo desce na estação da Sé. Sem perceber já se está trincando no gosto, no tempo, na vontade. Trinca que desenha um rio no concreto. Abala a resistência à cidade, e não sabemos o que foi. O que aconteceu. Depois já é tarde demais. Já fomos inundados quando percebemos num assombro como é triste a agonia de um rio. Fugindo, aquela era a vida fendida abalada fornicada culpada prenhe. O barco repintado de branco e vermelho jogado nas margens do Tietê é acompanhado dos descuidos. E de repente é silêncio e paralisia na marginal do Tietê. É o silêncio de dentro daquele barco escuro, o silêncio impossível despregado da camada de tinta tão grossa que se pressente, a sua espessura. Todo mundo olha e a membrana de casas amontoadas estica maleável sua promessa de continuidade. A membrana tensiona e não saímos nunca. Não saímos mais. A cidade é feita das belezas obstruídas. A cidade comove. A cidade dói. A cidade é feia das belezas obstruídas, a cidade.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Leontina 3

Foto: Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Puertas, Ciudad de México, 1925.

Leontina seguia pela tarde. Ao atravessar os batentes da porta da casa, interrompeu a frase que lhe escapava resmungada do pensamento - a possibilidade de cair. Só uma insinuação, no entanto, porque não admitia pensar em fragilidades, e assim tratava as mais evidentes: como lampejos, clarões agudos que se dissolviam no escuro intenso que abolia profundidades, que incorporava anônimos tempos desconexos e emaranhados que formavam seu longo dia há anos. Demorou a acertar a mão no disfarce dos pontos vulneráveis, como tinha demorado a aprender com a mãe a fazer, irrepreensível, uma vira francesa.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Saudade

Foto: Paul Stuart (Estados Unidos, 1890-1976). Styll Life, Pear and Bowls. Twin Lakes, Connecticut, 1916.

Cozinha

Dentro da casa, construída com tijolos de lembranças, ecoam os barulhos da rua. Uma voz chama e a porta se abre: oferece um abraço e um café. Passos seguem até a cozinha, que testemunha profundas discussões acerca da vida, amor, política. Histórias complicadas, engraçadas, apaixonadas, evaporam no ar, se confundem com o vapor que sai da cafeteira. A cozinha transforma a suposta disputa em amizade. Nesse momento, a mesma cozinha recebe a visita de um certo Menegildo: Maín?!, ou de um quiabo (comedor de paredes) e seu sorriso gostoso e inexplicável. A mãe passa com pressa, em busca de algum livro. A irmã traz no colo a sua jóia. O anteriormente mitológico irmão chega e sai despercebido. E, na cozinha, todos se encontram, conversam, reclamam, sorriem. Outros cômodos da casa imploram para serem notados: a sala, que conta a história de um ratinho cozinheiro, ou um quarto habitado por dinossauros. Nenhum deles seduz tanto quanto a mesa, algumas xícaras de café e um bom papo. Ah, se essas paredes falassem...

Andrea H. P. De Fazio 05.12.07



Recebi esse texto da amiga Andrea no jantar de sua despedida de Assis.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Interior 3

Foto: Sergio Larrain (Clile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.

Facilitado pelos portões de grades e muros baixos que ainda resistem nos bairros, é perpetuado um antigo e tácito acordo entre senhoras: o direito de levar mudas, flores e ervas que possam ser alcançadas da calçada. Mas sempre na sua vizinhança. Não são bem vistas as que extrapolam fronteiras. E muito menos as que depois de visitadas, dificultam o acesso livre. A elas serão negados cravos, rosas, hibiscos, mimos dobrados, os maços de cheiro-verde, chuchus, couves e buchas. E principalmente os conhecimentos acumulados sobre todas as plantas comuns entre as casas, os diferentes jeitos de preparo, usos, proveitos. Foi flagrando dona Ignez contando as folhas arrancadas do meu manjericão verde de rama comprida que pendia balançante e convidativo fora de seus limites, terminando a conta em 12 das maiores, que soube da propriedade sedativa da erva: faço chá pra dor de cabeça e gargarejo pras aftas. Continuou cortando as folhas enquanto falava. Achava que tinha ouvido qualquer coisa sobre ser boa pra mordida de cobras e escorpiões. Mas aí já não sabia como preparar, se eu quisesse, ela perguntava pra Dona Ana da esquina de baixo. Eu ri me lembrando em voz alta de ter lido que, em algum dos séculos passados, diziam que quem cheirasse muito manjericão ficava com o cérebro cheio de escorpiões. Ela gostou da história. Ia contar pra Dona Ana. E contei que também é chamado de basilisco porque foi alimento de uma deusa-serpente chamada Basilisk, que matava com o olhar: não mordia não? Não, só olhava. Ela quietou os movimentos esparolados pra me olhar de um jeito a me fazer entender que, mesmo com minhas contribuições pouco práticas, eu acabava de firmar o acordo.