Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sábado, 22 de dezembro de 2007

Imprevisto

Foto: Edouard Boubat (França, 1923-1999). Paris, 1951.


- Mãe, lembrei das minhas lembranças!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Uma casa


Foto: Mariana Yapolsky (Chicago, 1929-2002). Falda huichola, México.
Este conto foi publicado no jornal literário de Curitiba, Rascunho: http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=4&lista=1&subsecao=12&ordem=1709

De pranchas de madeiras largas e finas, dobráveis, é aquela casa. Olhando da rua se atravessa ela toda, em sua umidade, em seu aleitamento manso da vida, em sua porosidade desavergonhada de existência em composição. Vê-se através dos vãos. Redoma de ar no meio do quarteirão do sertão. Engenhosa em enganar o entendimento do tempo. Algumas paredes já não existem e, à revelia do tempo, alguns móveis ainda estão. O banco sujo de pernas serradas da velha ainda estava. Frente à cama. A cama não mais. A avó deve ter se sentado ali tantas vezes. Sentava ali com cansaço morno de indiferença. Dobrou o corpo e olhou o chão de terra batida mais de perto. Encontrou uma carreira de formigas grandes. As meninas que nasceram na rua contaram que foi através das largas frestas que viram o vidro e a moça. Tudo contado com o devido sussurro. E nos gestos do segredo, uma mímica atroz das conversas adultas. Tudo prostrado dentro. Uma incômoda indignação frente aquela ausência que não entendia. Foi sendo criada sem barulho. E agora é o tudo momentâneo de seu peito. Foi se estendendo até ser. Neutralizou. E agora sem mais: era. Tinha passado pelo arrebatamento daquela paixão, e agora relembrava uma história alheia como quem pesca uma salvação, olhando fixo uma carreira de formigas grandes, de corpos fortes, pretos e patas vermelhas ariscas. O meio da carreira. No meio de um lugar onde jamais esteve. E a história volta como se fosse dela a dor nas entranhas. Queria uma dor assim. Era incapaz agora de uma dor assim, e isso era atordoante. Lembrava querendo sentir e distanciar o enjôo que vinha de sua própria vida anestesiada. Bichos e escombros se camuflam ali. O boldo se agita no vento e desprende seu cheiro enjoativo. E os cravos amarelos lá no fundo, perto do muro, refletem alguma luz que passa. Os lagartos correm entre a vegetação rente aos muros, a maioria, marias-sem-vergonha rosas e brancas, aos montes. Na calçada ainda velando, um chapéu – de – sol de antes de tudo, alto e cheio, sombreia e proíbe de nascer o que precise de sol. Os morcegos voam por ali nas noites por causa de seus coquinhos verdes. Os meninos brincavam por ali nas manhãs por causa de seus coquinhos verdes. E foi nas algazarras de uma manhã de domingo, quando a viola chegava ao fim da moda, que se confundiu em meio aos uivos da ventania e chiados da rua, pregão de sorveteiro e conversas de velhas que voltavam da igreja, o grito sufocado da moça da casa. Passou como o assobio do vento. Alguns pensaram ouvir alguma coisa, pararam atentos. Depois nada. Um chorinho de gato continuou a ladainha. Sempre muitas ninhadas de gatos ali entre as touceiras de erva-cidreira. A rua continuou. As mães gritaram o almoço. E a moça chorou e sangrou na cama. Junto dela, a avó que lhe tinha aliviado o peso do corpo e o medalhão de lata do batismo, com a imagem do anjo da guarda, pendurado com fita branca encardida da terra vermelha, na parede sobre a cama. Ficou doente depois, não quis enterrar a carne que lhe saiu na hora do grito. As meninas juraram que ela guardou em um vidro grande de conserva de palmito, ao lado da cama. Ajoelhava na frente e ficava olhando, movimentando o vidro, os olhos mortos, estatelados, a pele amarela, sombreada pela luz do toco de vela. Morreu logo. A avó enterrou o vidro junto.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Capital

Foto: Berenice Abbott (Estados Unidos, 1898-1991). Court of the First Model Tenement, 1936.
Depois do segundo metrô os rostos são ilusões de familiaridade que não se cumprimenta: espreita e imagina. Não ignora. Os mais à vontade detém o domínio da conveniência do cinismo. Mas não se ignora. É sofrido nos ombros, nos joelhos, no pescoço, nos punhos, nos tornozelos, nas falanges, esse reconhecimento, esse desdobramento. Depois desce na estação da Sé. O mundo desce na estação da Sé. Sem perceber já se está trincando no gosto, no tempo, na vontade. Trinca que desenha um rio no concreto. Abala a resistência à cidade, e não sabemos o que foi. O que aconteceu. Depois já é tarde demais. Já fomos inundados quando percebemos num assombro como é triste a agonia de um rio. Fugindo, aquela era a vida fendida abalada fornicada culpada prenhe. O barco repintado de branco e vermelho jogado nas margens do Tietê é acompanhado dos descuidos. E de repente é silêncio e paralisia na marginal do Tietê. É o silêncio de dentro daquele barco escuro, o silêncio impossível despregado da camada de tinta tão grossa que se pressente, a sua espessura. Todo mundo olha e a membrana de casas amontoadas estica maleável sua promessa de continuidade. A membrana tensiona e não saímos nunca. Não saímos mais. A cidade é feita das belezas obstruídas. A cidade comove. A cidade dói. A cidade é feia das belezas obstruídas, a cidade.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Leontina 3

Foto: Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Puertas, Ciudad de México, 1925.

Leontina seguia pela tarde. Ao atravessar os batentes da porta da casa, interrompeu a frase que lhe escapava resmungada do pensamento - a possibilidade de cair. Só uma insinuação, no entanto, porque não admitia pensar em fragilidades, e assim tratava as mais evidentes: como lampejos, clarões agudos que se dissolviam no escuro intenso que abolia profundidades, que incorporava anônimos tempos desconexos e emaranhados que formavam seu longo dia há anos. Demorou a acertar a mão no disfarce dos pontos vulneráveis, como tinha demorado a aprender com a mãe a fazer, irrepreensível, uma vira francesa.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Saudade

Foto: Paul Stuart (Estados Unidos, 1890-1976). Styll Life, Pear and Bowls. Twin Lakes, Connecticut, 1916.

Cozinha

Dentro da casa, construída com tijolos de lembranças, ecoam os barulhos da rua. Uma voz chama e a porta se abre: oferece um abraço e um café. Passos seguem até a cozinha, que testemunha profundas discussões acerca da vida, amor, política. Histórias complicadas, engraçadas, apaixonadas, evaporam no ar, se confundem com o vapor que sai da cafeteira. A cozinha transforma a suposta disputa em amizade. Nesse momento, a mesma cozinha recebe a visita de um certo Menegildo: Maín?!, ou de um quiabo (comedor de paredes) e seu sorriso gostoso e inexplicável. A mãe passa com pressa, em busca de algum livro. A irmã traz no colo a sua jóia. O anteriormente mitológico irmão chega e sai despercebido. E, na cozinha, todos se encontram, conversam, reclamam, sorriem. Outros cômodos da casa imploram para serem notados: a sala, que conta a história de um ratinho cozinheiro, ou um quarto habitado por dinossauros. Nenhum deles seduz tanto quanto a mesa, algumas xícaras de café e um bom papo. Ah, se essas paredes falassem...

Andrea H. P. De Fazio 05.12.07



Recebi esse texto da amiga Andrea no jantar de sua despedida de Assis.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Interior 3

Foto: Sergio Larrain (Clile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.

Facilitado pelos portões de grades e muros baixos que ainda resistem nos bairros, é perpetuado um antigo e tácito acordo entre senhoras: o direito de levar mudas, flores e ervas que possam ser alcançadas da calçada. Mas sempre na sua vizinhança. Não são bem vistas as que extrapolam fronteiras. E muito menos as que depois de visitadas, dificultam o acesso livre. A elas serão negados cravos, rosas, hibiscos, mimos dobrados, os maços de cheiro-verde, chuchus, couves e buchas. E principalmente os conhecimentos acumulados sobre todas as plantas comuns entre as casas, os diferentes jeitos de preparo, usos, proveitos. Foi flagrando dona Ignez contando as folhas arrancadas do meu manjericão verde de rama comprida que pendia balançante e convidativo fora de seus limites, terminando a conta em 12 das maiores, que soube da propriedade sedativa da erva: faço chá pra dor de cabeça e gargarejo pras aftas. Continuou cortando as folhas enquanto falava. Achava que tinha ouvido qualquer coisa sobre ser boa pra mordida de cobras e escorpiões. Mas aí já não sabia como preparar, se eu quisesse, ela perguntava pra Dona Ana da esquina de baixo. Eu ri me lembrando em voz alta de ter lido que, em algum dos séculos passados, diziam que quem cheirasse muito manjericão ficava com o cérebro cheio de escorpiões. Ela gostou da história. Ia contar pra Dona Ana. E contei que também é chamado de basilisco porque foi alimento de uma deusa-serpente chamada Basilisk, que matava com o olhar: não mordia não? Não, só olhava. Ela quietou os movimentos esparolados pra me olhar de um jeito a me fazer entender que, mesmo com minhas contribuições pouco práticas, eu acabava de firmar o acordo.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Poema matinal do Rodrigo antes do pão de queijo prometido:

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).


Ou é

Nalguns dias gosto de leite,


Com café.


Noutros não.


Bom mesmo é cigarro com café


Toda manhã.


Se um charuto é só um charuto,


Café é bom.


Se um cachimbo não,


Não!


Bom é o leite, ou o cigarro, ou...


Ou não.


Será que o café me toma volúvel?


Acho que não.


Também é solúvel e indeciso.


Ou não.


Acho que é o ou não.


Não engano nem dona Canô,


Nego com dois nãos pra afirmar:


Café é bom!


Ou café é cachimbo? ou !


Ou não.


Ou etc.

Poema do amigo Rodrigo Cracco.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Baús, caixas e pastas.


Foto: Leo Matiz (Colombia, 1917-1998). Polígono.

Revirar guardados expande o tumulto de tantos caminhos. Outra língua é a que responde pelo tempo acumulado na poeira e no cheiro que lembramos, e é pouca a previsão de onde vamos tirar a voz de argumentar. A surpresa foi dar com uma serenidade de exaurir o fôlego.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

As coisas

Foto: Ralf Gibson (Estados Unidos, 1939).


Quando criança ouvia minha mãe dizer que, no escuro e no silêncio, os livros da biblioteca sussurravam suas histórias e definiam, a revelia do dono, suas afinidades e seus lugares na estante. Ou decidiam sumir, como outros objetos, entre as nossas mínimas distrações. Hoje, diante de um desses sumiços mágicos, perguntei ao Menegildo se sabia da minha carteirinha da biblioteca (que sumindo assim, me diz do desejo de se esconder, não de um livro, mas de uma biblioteca inteira). Respondeu com um levantar de ombros que, como não tinha sido coisa dele, era muito provável que fosse coisa do Saci, já que anda ventando muito ultimamente. Então segui seu conselho, e acendi uma vela ao Negrinho do Pastoreio.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Acordar

Foto: Paul Strand (Estados Unidos, 1890-1976). Kitchen. Loch Eynort.


Levantou resvalando nos sonhos. Buscou os chinelos debaixo da cama morna e seguiu pelo corredor que impregnou com sua névoa azulada. Translúcida, incorporou os goles de café.

domingo, 11 de novembro de 2007

Leontina 2

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976).

Ver Pensamento, tudo que a mente frutifica: http://pensas.blogspot.com/


Antes do violino cessar, Antonio batia na porta os dois toques curtos, e a Leontina que atendia tinha já os olhos de entrega que ele bem conhecia. E sorria doce do jeito que não costumava ser. Então ele tirava o chapéu de feltro verde escuro e o pendurava no espaldar da cadeira, junto da toalha molhada. Jogava o paletó na poltrona enquanto Leontina tirava as nêsperas - que era um dos tantos mimos constantes que ele lhe trazia - do pacote de papel pardo, e as arrumava, as quatro, no criado-mudo ao lado da cama, junto de um pequeno baú de madeira que era mantido sempre vazio.
Antonio foi surpreendido pelo gostar daquela mulher quieta e séria à braveza, que primeiro lhe foi rude, pra só depois aceitar a rosa única que ele ofereceu já na iminência de desistir, com a frase dita a seco, em seu tom monótono: Sua teimosia junto com o desenho das sobrancelhas me aproxima de Gaetano. Acostumou, não sem antes se bater inutilmente com seu orgulho, ao convívio com o segredo que o silêncio dela guardava e que os olhos tentavam alcançar quando no desespero do amor, fugiam dos seus e fixavam o pequeno baú vazio. Disse a Leontina uma única vez de seu desejo de casar, e a resposta foi no mesmo tom da primeira: não. Apesar de querer insistir, se conteve por saber que ela lhe falaria com sua tranqüilidade áspera o que já sabia, e preferiu não ouvir todas as letras, a história toda, e continuar ali com ela, da maneira inventada por ela de através do amor dele, amar outro homem.

sábado, 10 de novembro de 2007

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tempo

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Estranhamento, 1948.


O cotidiano se povoando de visões: alucinações de sons e imagens. O espelho da cômoda multiplica a diferença marcada, pontuada, interrompida. Repassa gritante na superfície que reflete os nós, os traços que foram e serão, numa ausência aterradora do que é. Nas laterais, espelhos retangulares, menores e reguláveis possibilitam ângulos, apostas, encaixes, no revirar dos pedaços. Nesse rogo desesperado de minha orfandade, me alcança um jogo de montar.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Esquecido

Max Ernest (Alemanha, 1891-1976)


O poder de recusar.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Leontina

Foto: W. Eugene Smith (Estados Unidos, 1918-1978). Vila espanhola, 1950.


O que saber de Leontina. Os vestígios encontrei num domingo desgostoso, disfarçada em algum contentamento que por teimosia me obrigava a sentir, empurrando pra insônia seguinte todos os dias e a frustração. Entrei me traindo no quarto de despejo entulhado com Leontina. Tenho ainda sob os olhos a Leontina que me era apresentada como espólio dos anos que vieram dar aqui a nado, da guerra velada que lutaram entre si. E que se estende. E que eu estendo. O que saber de Leontina é pelo interesse em mim mesma. Sentia ferroadas com a exposição, porque tudo foi mostrado e descrito como se eu fosse cega e não pudesse ver a foto no diploma de modista e a data: 1934. Porque tudo foi exibido num descontrole sujo. Na minha cara, com improviso torto, amarfanhado, sorriam entre sufocos de afogados e transformavam Leontina em fábula de moral edificante. As entranhas contorceram, e agora deu que quero saber de Leontina.

domingo, 14 de outubro de 2007

Delicadezas

Foto: Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Laserpitium Siler.


Chuva voltando. A chaleira amassada de tampa perdida chia na chapa de ferro.
Chia, chia, dona cutia: faz o eco das gargalhadas lá do terreno.
Todos correndo atrás dos anus, coitados, que parecem aviões de calda quebrada brecando o nariz no chão.
Quanto tempo a bolha colorida dura no vento aberto?
O presente é um galo pra acompanhar quando acorda às cinco da manhã. Pode falar comigo?
Chuva caiu. Café com bagaceira na xícara dos adultos. A comunhão silenciosa rodeando a mesa. O tico-tico, íntimo, palpitando. Uns suspiros e os cochichos dos brinquedos que descobrem os cantos empoeirados. Foi mais um domingo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Formigas

Foto de Ruy de Souza Dias (São Paulo, 1950-2003). Fez, Marrocos, década de 1970.


Sigo com os olhos os andares das pequenas formigas que invadiram a casa, como em toda primavera. Aqui, na parede a minha frente, em frente à mesa onde escrevo, caminham ondulantes pelas molduras das fotos. Passam recortando pela mulher esmolando na entrada da cidade, pelo menino com a sacola, parado na pose que se sugere improvisada em uma rua de pedras em degraus, e pela velha que segura na boca uma ponta do pano que lhe cobre a cabeça, enquanto ensaia o próximo passo, o que a levará pra dentro de uma das tantas portas estreitas que ponteiam as ruelas de uma Fez dos anos 70 onde morou o pai do meu filho. Com o mormaço amolecendo o corpo, recosto na cadeira pra melhor seguir as indicações das formigas. De uma foto a outra, indo e voltando, me induzem reescrituras das histórias que fui inventando, conforme convivendo, pra essas fotos. A memória invade sorrateira e escuto de novo como foi aquele tempo no Marrocos. Escuto sobre os copos grandes, cheios de água fervente e um ramo generoso de hortelã imerso: bebem isso durante o dia todo, intercalando com as baforadas no narguilé, nas portas das lojas e casas, Priruli, debaixo de um calor de quarenta graus. A voz é a mesma de sempre no jeito único de me chamar. Deixei de me assustar quando o escuto nitidamente. A morte não paralisa e o morto não deixa de surpreender em suas formas. Essas fotos são o olho no olho com o morto.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Idéias Extravagantes

Foto: Man Ray ( Estados Unidos, 1890-1976). A l'heure de l'observatoire - Les amoureux.


Dessas que surgem enquanto os olhos,
entre contenção e desabalo,
desatam os nós do alfabeto composto em línguas.
Idéias atentas aos ouvidos os acompanham até a rua:
Insistência do som: coincide, às vezes
- a boca repete sem pensar, voz intrusa -
é o que cochicho ao teu ouvido.
As contas mensais cansadas e as buscas de quem?
afinal vão se intercalando ao trabalho cotidiano.
Espera duvidosa do esvair-se diante da expectativa
que não tomba nem levanta bandeira branca.
As mais absurdas suposições criadas
pela construção fantástica a remontar histórias.
Fatos e conclusões transcendem ordens e se deliciam
nas desordens de aprazíveis polpas a vazar entre os dentes,
das relações entre - sempre, porque os caminhos
são a composição -
da formosa tormenta conjurada à revelia,
e o princípio inesperado do encantamento desabrocha,
atordoante como uma espiral de sonho
depois da noite insone.

domingo, 7 de outubro de 2007

Interior 2

Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986). Casa, barda y árbol.


Pelos pastos, esparsas árvores. Muitas Farinhas-Secas com seus troncos claros sinalizando a vista de quem vai pela estrada no começo da manhã. Ondulações ligeiras da terra permitem que se aviste os ocos onde se escondem riachos raquíticos e bois deitados. Coqueiros recorrentes. Bambuzal. Com intervalos de cercas, hortas e galinheiros, casas de tábuas de pintura velha com alguma mulher que varre a terra da frente da porta da cozinha guardada pelo Chapéu-de-sol e pela Primavera carregada de flores cor-de-maravilha. O dia desce, mas o sol não consegue romper a poeira que é redoma nos horizontes. O calor paralisou o tempo no meio do nosso peito e é difícil de respirar. As laranjeiras. Um homem a cavalo chega na beira da estrada. Vê que do carro alguém olha. Segura firme as rédeas do animal que entorta o passo pra direita, e acena com o chapéu e o sorriso. A cana enrodilhando vilarejos. Um Tietê calmo e ondulante, que ainda não sabe da cidade de São Paulo, se estende longe e largo. Tanta água parece destoar. Ser pra ela mesma. Isolamento que arrebata o pensamento.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Notícias de antes da viagem

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976). Sem título, 1931.

Domingo de manhã ventada e passeio com o menino
As risadas deslizavam quentes do sol
Suamos o caminho da volta.
Ouvimos o jazz e fizemos babaganouj
Comemos
E continuamos as descobertas da mitologia indiana.

Na segunda,
Pensar na mala, na passagem, no trabalho.
O dinheiro contado diminuiu no caminho:
No sebo encontrei as cartas do Graciliano pra Heloísa.
Leio as cartas de amor:


“Eu, como te disse anteontem, não entendo de confissões, nunca me confessei. Mas declarei que estava disposto a ajoelhar-me diante de ti. Imagina que estou de joelhos.”


Em algumas horas estarei na estrada.
Vou olhar pela janela do ônibus
e ficar cada vez mais interior.
Levo em meus lábios o seu silêncio.

sábado, 29 de setembro de 2007

Partir

Foto: Werner Bischof (Suiça, 1916-1954). Acería en Jameshedpur, Índia, 1951.


Sentia vontade de voltar. Mas não. Os pés autômatos iam em frente. E confiou o caminho, apesar de relutante. O corpo mais estranho. Menos seu. Seguiu pelas pedras da rua. Virou a esquina e uma ladeira lhe inclinou pro equilíbrio. As árvores da alameda que beirava o rio, conforme se moviam, aumentavam. Sombreavam a vista. Um banco de praça quebrado estava vazio. Mal sentou escondeu o rosto nas mãos. Mas não conseguiu. Só um ganido. Teria que voltar ao quarto da pensão. Voltar e levar embora o resto. Embora. Súbito, entendeu o que ouvia: a água descendo pelas pedras. Sua mãe lavando a roupa. Seu choro de cara vermelha e boca escancarada na margem. O tombo nas pedras e o ser puxado pela correnteza. As músicas depois que aprendeu a falar. Os gritos do pai no começo da noite. Depois desapareceu. Depois a quietude. Todos os dias em silêncio. Envelhecendo muda, a mãe. Então, o trem no fim da infância. Sozinho. Embora. E já outra vez ia embora. Com o que tinha ficado daquela vida: a foto, a fita branca de cetim. As roupas deixaria pra dona da pensão.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Reaprendendo

Foto: Ileana Gavinoser (Argentina). 2005.


Deixou a lição da escola pra fazer depois de comer o café da manhã. Empurrou a toalha descobrindo um pedaço do tampo branco da mesa da cozinha, e ali abriu o caderno, espalhou o lápis e a borracha. Parei pra olhar distraída entre os goles de café, encostada na pia, de costas pra janela aberta que mostra o jardim seco. O corpo de menino ainda vestido com o pijama, ajoelhado na cadeira, se dobra sobre as letras que vai desenhando, que vai dizendo em voz alta, interrogativo pra si mesmo. Vou me perdendo nos movimentos e na voz dele, no café, no vento leve que me toca as costas, no morno da manhã onde tento acordar. E de lá onde fui parar, lentamente retorno quando percebo que agora ele se dirige a mim, sem levantar o rosto nem parar o que faz: isso não é fácil. Você também achou difícil um dia, só não lembra mais porque acostumou.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Da urgência

Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956). Década de 1920.


De um caco de vidro verde encontrado na rua,
Do som do girar do pião do menino,
Do passo indeciso,
Do tilintar dos talheres no almoço,
Do suspiro do corpo cansado,
Das palmas no portão,
Do chacoalhar das folhas impressas pelo vento,
Daquela estrela cantada por Maiakovski,
De toda implicação da vida no grito e na ausência dele.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Salto do alto

Foto: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Perspectiva, 1949.


Os tombos que seguem a escolha, seqüenciados, embaraçados, nítidos, abismados. E aquele fiapo que fez a diferença se encobre e descobre sibilante, ondulante. Querendo, enjoando e querendo. Caímos de ou caímos no: tomber amoureux; fall in love.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Mimetismo


Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Aesculus Parviflora.

De uma funda tristeza, esse quente do vento. Desabotoou a camisa que guardava o inchaço desassossegado do corpo. Ele assim, sem a cobertura, procura água. Mas aqui não chove e não tem previsão. Nem bacia. Rio é longe, mais ainda o mar. Aí vira bicho que rasteja lá pro canto escondido, no encontro do muro com as plantas cheias, onde é mais sombreado e fresco. Entredormente dirige os sonhos com oásis e outras frescuras pro deleite, enquanto escuta os cantos das crianças e os chamados dos outros. Hibernado, fingido de morto, sobrevive.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Circulação

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). Frida Kahlo.


Um corpo parado por muito tempo no mesmo lugar ilude a si mesmo. A circulação dá uma volta inesperada e muda o ângulo da carne. A cabeça inclina pra posição desconhecida porque impossível no corriqueiro. De tanta paralisia, dimensiona além pra se mover como se movem as plantas.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Galinha

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).


Lá fora, olhando pela grade do portão, ele cantava mamãe eu quero. Passou a mulher vendendo ovos e lhe deu um. Grande e marrom. Entrou equilibrando aquilo nas pontas dos dedos da mão direita: Ó! Sou malabarista! Foi pra cozinha e começou a operação meticulosamente. Pegou um dos potes de comer cereal, o amarelo: pra ficar mais quentinho porque é cor do sol da hora que vou pra escola. No banheiro, fuçou no armário até encontrar o pacote fechado de algodão. Com os chumaços foi montando a caminha dentro do pote. Arrumava o ovo lá no meio dos algodões e olhava. Aí arrumava de outro jeito. Depois olhava. Mudou minimamente e sorriu: pronto. Começou a cobrir com os algodões, terminando com um trapo marrom que encontrou na casa da vó. Quando viu a cara da mãe olhando, de braços cruzados, encostada no batente da porta, fez a cara dele de paciência: não posso sentar em cima senão quebra!

domingo, 9 de setembro de 2007

Rimas do Igor num domingo de rede

Foto: Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). Detrás de la estación de San Lázaro, 1932.


O corpo


No passo
No pulo


Da poça


Passa.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Tentativa de carta ao Moço Sério:

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976). Noir et blanche, 1936.


Não tenho outra ponte. Nada mais que me leve. Que me conduza. E eu quero chegar. Eu tenho que ir. Assim como estou agora. Plena em meus andrajos. Porque é assim que estou. Os andrajos não me comprimem. Expandem. Não sou definitiva. Sou todo um baile de máscaras que o ser andrajosa me permite. Posso arriscar direções. O movimento conduz a identidade. O sufoco agora é que o único movimento que corre essa distância é a palavra. Minha oferenda. Minha dádiva. Meu desespero. Minha. Leva até aí o esvoaçar dos meus contornos para que eu continue sendo. É o tormento consentido. Uma busca que supera a mim e a você porque destroça e cria. Desaprendemos pra continuar. Assim, devidamente tomada, nenhuma palavra é gasta demais.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Aspetto

Foto: Imogen Cunninghan (Estados Unidos, 1883-1976). Magnolia Blossom, 1925.


Escuto sempre os passarinhos no meu quintal, pela manhã. E durante todo o dia. Tenho o suspiro certo guardado pro despertar. Da boca do estômago. Não costumo apegar-me aos humores. Saio pro sol já tão quente. A roupa molhada, torcida, estendida. Vejo que as ervas dos canteiros vão bem. Menos o orégano, preferido dos pardais. Produzo os cheiros que saem pela janela da cozinha. À tarde a casa recende aos panos ensolarados. Tem os insetos quando volto a fechar as janelas. O vento e a primeira estrela. O dia vai e me leva. Atenta. Aguardo.

domingo, 2 de setembro de 2007

Calendário

Foto: André Kertész (Hungria 1894-1985). Chez Mondrian, Paris, 1926.


Fiz de ontem o meu Ano Novo, meu Yom Kippur, meu Dia Fora do Tempo. Limpei a casa, troquei as cores, reencontrei pequenos pedaços meus em selos, roupas, bilhetes dentro de livros, flores secas, dedicatórias, idéias anotadas. Coisas deixadas pro reencontro surpreso, dadas a inventividade da memória. Renovei as inutilidades. Consagrei os rituais cotidianos. Acendi a vela assentada em um pequeno pedaço de papel com um desejo. Não sei se com as bênçãos de Sírius. Nem sei se algum ciclo lunar tinha se fechado. Mas foi confirmado pela vizinha que agora todos estão sob Saturno em Virgem, daqui até dois anos, e que isso me faria mais preocupada com organizações e saúde. Eu não sei de nada disso. Sei que de ontem fiz meu Ano Novo, meu Yom Kippur, meu Dia Fora do Tempo. E me sinto esfuziante como em todo começo.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Desencontro

Foto: Horacio Coppola (Argentina, 1906). Nocturno. Calle Chile y Bacarce, 1936.


Senti o sorriso se fazer sem graça. De uma evidência constrangedora, o meu descontentamento. Inclinei o rosto. Brinquei com o chaveiro nas mãos. Ajeitei no ombro a alça da bolsa. Mas ele me seguiu os gestos. Os olhos sempre em mim. Pressentiu minha intenção. Não me deixou fugir. Fiquei aflita e translúcida. E foi proposital. Aqueles segundos imensos pra me dizer que ele sabia. Acredito agora que até da pungência dos meus sonhos repetidos ele soube ali. Queria que ele dissesse alguma coisa que me permitisse ir embora. A boca se apertava mais e mais. Lia na minha impaciência crescente, naquele pequeno espaço de uma esquina, que o meu desejo era outro. Ouvir de outro. Quando respirou fundo e fechou os olhos, eu petrifiquei: soube. E agora diria em voz alta o nome que guardo. Não. Pediu desculpas pelos elogios. Ainda dizendo as últimas palavras, deu meia volta e seguiu na direção da praça. Eu voltei pra casa sem comprar os ovos.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Sobre gatos

Foto: Carlos Pérez Siquier (Espanha, 1930). Almeria, La Chanca.


Talvez comece a chover, por isso vi o gato rondando a casa, procurando algum vão pelo qual pudesse passar e se esconder. Da chuva e de mim. Chegava da rua e vi aquele andar agachado de soldado camuflado espreitando minha janela. Com o ranger do portão ele nem olhou pra trás. Correu do jeito engraçado, as orelhas deitadas. Ele não tem nome. Tem vários e nenhum. Impossível buscar algum canto da vida sem encontrar um gato. Na infância, muitos. Começou com a gatinha preta de rabo torto que mudou comigo pra casa ainda em construção. Ela com algumas semanas, eu com seis anos. O último foi Renard. Um gato de patas curtas e focinho estreito. O rabo longo e espesso. Os pêlos compridos como os de um persa, mas igual a um siamês nas cores. Dos pêlos e dos olhos. Os olhos azuis. Eram estalados. Assustados. Pra mim, era uma raposa que se coloriu diferente. Quando me mudei, quis que ele fosse junto. Ele ressabiou. Preferiu as visitas perto das cinco da tarde. Comer comigo queijo fresco com café. Minha barriga crescia. Renard continuava ressabiando. Até que sumiu. Da minha casa e da casa da minha mãe. Quase visinhas. Antes, fez xixi no livro do T.S.Eliot que estava na minha cabeceira, mas que não era meu. Via seu andar de raposa nos telhados a minha volta. Apareceu uma gatinha siamesa na casa da minha mãe. Quando alcançou idade, engravidou do Renard. O filho é esse que agora me ronda. Que não dei nome. Não adotei. Os que conheciam, disseram que o Renard morreu. Comigo ficou como reflexo olhar sempre pros telhados toda vez que me sinto observada.

sábado, 25 de agosto de 2007

Interior 1

Foto: Inge Morath (Ástria, 1923-2002) Niño llevando hogada de pan. Pamplona, 1954.


Nostalgia do passado. Antigamente não foi melhor. Era. Como agora é. Coisas boas, outras nem tanto. As horríveis. A idéia de um paraíso no passado persiste. O paraíso no desconhecido. E nada mais desconhecido que o passado. Com muita liberdade, ou pouca, a gente sempre inventa. Aí invento um tempo e uma vida pra preencher esse tempo inventado. Quando enrosco mudo o rumo. No interior o espaço pro improviso se estende. O amigo sempre mora perto. E no interior, visitar amigos ainda pode ser de um estalo. Não precisa marcar hora. Vai. A pé. E leva o pão, porque café sempre tem.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Inaudito


Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986) Barda tirada en un campo verde.

Alguns nomes não são possuídos. Ultrapassaram a posse e carregam as nossas saudades que não sabemos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Imagem

Foto: Paul Strandt (Estados Unidos, 1890-1976). Window, Daliburgh.


A casa. A porta lateral está aberta. O ar é denso do silêncio povoado. O calor e os rumores do meio do ermo. É cortante o ranger dos bambus gigantes. Eles ladeiam a casa. Dentro é escuro, úmido, frio. Cheira a madeira molhada. Sempre. A cozinha é quase toda a casa. A mesa grande. As cadeiras descompostas pelo espaço. Utensílios. Livros abertos e fechados. Os pratos sujos. Panos. Óculos. Frutas. As flores apanhadas. Partes do silêncio. E também o arrastar da escova nos cabelos. Ele está em pé, atrás dela que está sentada muito ereta num banco, e lhe penteia os cabelos. Grave. Ela se move involuntária. O puxar que a escova lhe inflige ao pescoço. Não dizem nada. Bem à frente dela, uma janela pequena aberta de par em par. A mata no horizonte se revira com a ventania. Acompanha o cinza escuro da tempestade que chega. Ela quase não respira. É calmo o olhar que vê a aproximação da tempestade. É ainda curioso e encantado. O mesmo olhar que vê a cena vivida.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Vício literário

Foto: Bill Brandt (1904-1999). Corner table at "Charlie Bwown's", 1945.

Veio lá de fora pisando duro, o rosto ainda vermelho da discussão. Estacou entre os batentes da porta, olhou pra todos e esbravejou:
- Ciúmes! Inventou agora um ciuminhu besta e fica me aporrinhando!
Repentinamente virou em direção ao portão e gritou:
-Vá ler Dom Casmurro! Vá ler Otelo!

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Do que esqueço

Foto: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem Título, 1949.

Sempre dos gestos mais pessoais. Dos trejeitos mais repetidos. Esqueço dos meus modos nas situações. Das mãos na cintura quando converso em pé, e de como ergo o rosto pra soltar a fumaça do cigarro. Quando me descrevem, dizem do que mal percebo e do que é o menos passivo em mim. No descuido que o esquecimento permite, a restrita liberdade escapa. E os defeitos e falhas tão mal escondidos, os palavrões, a falta de tato, a evidência do cansaço, o excesso de cuidado, os pequenos melindres, a falta de paciência. Tudo bem figurado na descrição. Encarnado. Quando me chamam a atenção, perco o ritmo, tropeço e fico manca. Demoro a acertar o passo outra vez. A espontaneidade é coisa frágil.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Do encantamento das palavras

Foto: Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Bryonia Alba.

O significado é o que ocorre. Quando antes de entender é lugar de encanto, abrimos pro deslumbre: o som que as palavras fazem, algumas antes da boca, outras na delícia do dizer. E concordo com a história dos círculos. Dos entornos. Sempre composição. Tinta, forma, som, e aí, já um mundo todo. Quando começa a entrar luz pela janela, ele me diz: acorda agora porque já diaceu.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Sal

Foto: Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Pecera, Santorini, 1937.
São vários saltos. É a angústia de ter nítida a relação especular do tempo. Todas as suas imagens, todos os seus mundos acontecendo corpórea e mecanicamente. Concomitantes. Eu sei que foi um acidente desses que são comuns na infância. Eu sei, mas eu tremo. Do tremor abissal vêm os pedaços assentados. Eles voltam. Duas vezes, eles voltam. De todas as imagens, a mais terrível volta. E o medo que ela trouxe quando aconteceu. Um medo que é tantos medos quanto são os tempos de uma hora. E o pobre corpo desnorteado só sabe desobedecer. Desobedece ao menino, aquele pedaço de braço que se pendura. Era só uma brincadeira. Um golpe de luta de mentira. Não precisava tanto. Desobedece o meu corpo que se torna resistente e carrega o menino, quando o coração desfalece pálido. E desobedece ainda outra vez, essa estranheza, quando deve permanecer firme diante das aplicações de anestesia local na carne aberta, a agulha entrando no vermelho vivo, o líquido inchando e soltando água do braço aberto do menino. Essa é a primeira volta dos pedaços. A mais rápida. A que atordoa. Depois que o menino dormiu veio a segunda. A que começou quando fui trancar a porta da cozinha e vi no quintal os bichinhos de borracha arrumados nas filas da brincadeira. É nessa segunda volta que acontece a nitidez do encenado. E foi como sentir outra vez entre as mãos a vibração do eco, do estalo seco de dentro da cabeça do marido morto. Desmarquei todos os compromissos da semana. Olho pro menino quando ele não me vê. Enraiveço diante de médicos e advogados pelo mesmo motivo e com a mesma indignação de quatro anos atrás. Maldigo a dependência desse saber que não domino e que me abusa e que faz sofrer. Penso nisso que é a nossa vida e que toma formas tão estranhas a nós, formas que vão se parecendo conosco conforme convivem na memória. Olho pro menino e digo que ele é um doce. Prontamente sorri de lado, uma sobrancelha levantada e responde que sim, que é um doce, mas que às vezes, é salgado.