Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Formigas

Foto de Ruy de Souza Dias (São Paulo, 1950-2003). Fez, Marrocos, década de 1970.


Sigo com os olhos os andares das pequenas formigas que invadiram a casa, como em toda primavera. Aqui, na parede a minha frente, em frente à mesa onde escrevo, caminham ondulantes pelas molduras das fotos. Passam recortando pela mulher esmolando na entrada da cidade, pelo menino com a sacola, parado na pose que se sugere improvisada em uma rua de pedras em degraus, e pela velha que segura na boca uma ponta do pano que lhe cobre a cabeça, enquanto ensaia o próximo passo, o que a levará pra dentro de uma das tantas portas estreitas que ponteiam as ruelas de uma Fez dos anos 70 onde morou o pai do meu filho. Com o mormaço amolecendo o corpo, recosto na cadeira pra melhor seguir as indicações das formigas. De uma foto a outra, indo e voltando, me induzem reescrituras das histórias que fui inventando, conforme convivendo, pra essas fotos. A memória invade sorrateira e escuto de novo como foi aquele tempo no Marrocos. Escuto sobre os copos grandes, cheios de água fervente e um ramo generoso de hortelã imerso: bebem isso durante o dia todo, intercalando com as baforadas no narguilé, nas portas das lojas e casas, Priruli, debaixo de um calor de quarenta graus. A voz é a mesma de sempre no jeito único de me chamar. Deixei de me assustar quando o escuto nitidamente. A morte não paralisa e o morto não deixa de surpreender em suas formas. Essas fotos são o olho no olho com o morto.

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