Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tempo

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Estranhamento, 1948.


O cotidiano se povoando de visões: alucinações de sons e imagens. O espelho da cômoda multiplica a diferença marcada, pontuada, interrompida. Repassa gritante na superfície que reflete os nós, os traços que foram e serão, numa ausência aterradora do que é. Nas laterais, espelhos retangulares, menores e reguláveis possibilitam ângulos, apostas, encaixes, no revirar dos pedaços. Nesse rogo desesperado de minha orfandade, me alcança um jogo de montar.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Esquecido

Max Ernest (Alemanha, 1891-1976)


O poder de recusar.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Leontina

Foto: W. Eugene Smith (Estados Unidos, 1918-1978). Vila espanhola, 1950.


O que saber de Leontina. Os vestígios encontrei num domingo desgostoso, disfarçada em algum contentamento que por teimosia me obrigava a sentir, empurrando pra insônia seguinte todos os dias e a frustração. Entrei me traindo no quarto de despejo entulhado com Leontina. Tenho ainda sob os olhos a Leontina que me era apresentada como espólio dos anos que vieram dar aqui a nado, da guerra velada que lutaram entre si. E que se estende. E que eu estendo. O que saber de Leontina é pelo interesse em mim mesma. Sentia ferroadas com a exposição, porque tudo foi mostrado e descrito como se eu fosse cega e não pudesse ver a foto no diploma de modista e a data: 1934. Porque tudo foi exibido num descontrole sujo. Na minha cara, com improviso torto, amarfanhado, sorriam entre sufocos de afogados e transformavam Leontina em fábula de moral edificante. As entranhas contorceram, e agora deu que quero saber de Leontina.

domingo, 14 de outubro de 2007

Delicadezas

Foto: Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Laserpitium Siler.


Chuva voltando. A chaleira amassada de tampa perdida chia na chapa de ferro.
Chia, chia, dona cutia: faz o eco das gargalhadas lá do terreno.
Todos correndo atrás dos anus, coitados, que parecem aviões de calda quebrada brecando o nariz no chão.
Quanto tempo a bolha colorida dura no vento aberto?
O presente é um galo pra acompanhar quando acorda às cinco da manhã. Pode falar comigo?
Chuva caiu. Café com bagaceira na xícara dos adultos. A comunhão silenciosa rodeando a mesa. O tico-tico, íntimo, palpitando. Uns suspiros e os cochichos dos brinquedos que descobrem os cantos empoeirados. Foi mais um domingo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Formigas

Foto de Ruy de Souza Dias (São Paulo, 1950-2003). Fez, Marrocos, década de 1970.


Sigo com os olhos os andares das pequenas formigas que invadiram a casa, como em toda primavera. Aqui, na parede a minha frente, em frente à mesa onde escrevo, caminham ondulantes pelas molduras das fotos. Passam recortando pela mulher esmolando na entrada da cidade, pelo menino com a sacola, parado na pose que se sugere improvisada em uma rua de pedras em degraus, e pela velha que segura na boca uma ponta do pano que lhe cobre a cabeça, enquanto ensaia o próximo passo, o que a levará pra dentro de uma das tantas portas estreitas que ponteiam as ruelas de uma Fez dos anos 70 onde morou o pai do meu filho. Com o mormaço amolecendo o corpo, recosto na cadeira pra melhor seguir as indicações das formigas. De uma foto a outra, indo e voltando, me induzem reescrituras das histórias que fui inventando, conforme convivendo, pra essas fotos. A memória invade sorrateira e escuto de novo como foi aquele tempo no Marrocos. Escuto sobre os copos grandes, cheios de água fervente e um ramo generoso de hortelã imerso: bebem isso durante o dia todo, intercalando com as baforadas no narguilé, nas portas das lojas e casas, Priruli, debaixo de um calor de quarenta graus. A voz é a mesma de sempre no jeito único de me chamar. Deixei de me assustar quando o escuto nitidamente. A morte não paralisa e o morto não deixa de surpreender em suas formas. Essas fotos são o olho no olho com o morto.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Idéias Extravagantes

Foto: Man Ray ( Estados Unidos, 1890-1976). A l'heure de l'observatoire - Les amoureux.


Dessas que surgem enquanto os olhos,
entre contenção e desabalo,
desatam os nós do alfabeto composto em línguas.
Idéias atentas aos ouvidos os acompanham até a rua:
Insistência do som: coincide, às vezes
- a boca repete sem pensar, voz intrusa -
é o que cochicho ao teu ouvido.
As contas mensais cansadas e as buscas de quem?
afinal vão se intercalando ao trabalho cotidiano.
Espera duvidosa do esvair-se diante da expectativa
que não tomba nem levanta bandeira branca.
As mais absurdas suposições criadas
pela construção fantástica a remontar histórias.
Fatos e conclusões transcendem ordens e se deliciam
nas desordens de aprazíveis polpas a vazar entre os dentes,
das relações entre - sempre, porque os caminhos
são a composição -
da formosa tormenta conjurada à revelia,
e o princípio inesperado do encantamento desabrocha,
atordoante como uma espiral de sonho
depois da noite insone.

domingo, 7 de outubro de 2007

Interior 2

Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986). Casa, barda y árbol.


Pelos pastos, esparsas árvores. Muitas Farinhas-Secas com seus troncos claros sinalizando a vista de quem vai pela estrada no começo da manhã. Ondulações ligeiras da terra permitem que se aviste os ocos onde se escondem riachos raquíticos e bois deitados. Coqueiros recorrentes. Bambuzal. Com intervalos de cercas, hortas e galinheiros, casas de tábuas de pintura velha com alguma mulher que varre a terra da frente da porta da cozinha guardada pelo Chapéu-de-sol e pela Primavera carregada de flores cor-de-maravilha. O dia desce, mas o sol não consegue romper a poeira que é redoma nos horizontes. O calor paralisou o tempo no meio do nosso peito e é difícil de respirar. As laranjeiras. Um homem a cavalo chega na beira da estrada. Vê que do carro alguém olha. Segura firme as rédeas do animal que entorta o passo pra direita, e acena com o chapéu e o sorriso. A cana enrodilhando vilarejos. Um Tietê calmo e ondulante, que ainda não sabe da cidade de São Paulo, se estende longe e largo. Tanta água parece destoar. Ser pra ela mesma. Isolamento que arrebata o pensamento.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Notícias de antes da viagem

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976). Sem título, 1931.

Domingo de manhã ventada e passeio com o menino
As risadas deslizavam quentes do sol
Suamos o caminho da volta.
Ouvimos o jazz e fizemos babaganouj
Comemos
E continuamos as descobertas da mitologia indiana.

Na segunda,
Pensar na mala, na passagem, no trabalho.
O dinheiro contado diminuiu no caminho:
No sebo encontrei as cartas do Graciliano pra Heloísa.
Leio as cartas de amor:


“Eu, como te disse anteontem, não entendo de confissões, nunca me confessei. Mas declarei que estava disposto a ajoelhar-me diante de ti. Imagina que estou de joelhos.”


Em algumas horas estarei na estrada.
Vou olhar pela janela do ônibus
e ficar cada vez mais interior.
Levo em meus lábios o seu silêncio.