encostada na borda do chafariz seco da praça corria um giz no ladrilho vermelho ia e voltava ia e voltava a luz diminuía oca na surdina do céu e o vento acompanhava as voltas da mão dela segura e distante no fundo do olho no ponto cego do olho engolia uma pequena mágoa um pingado de ciúme que distraía no vazio do movimento gago que ia e voltava ia e voltava o giz acabou junto com o dia dilatando o ponto cego do olho jorrando o ciúme em espumas de leite em cólera amorosa de negativas impossível continuar encostada ali levantou assegurando a curta faca na cintura de elástico da saia florida não viu a lua amarela que subia em suas costas quando começou a tropeçar os passos pra fora da praça pra dentro do corpo do amante
André Kertész (Budapest, 1894-1985) Distorsión 34, 1933.
andava quase em cambaleio sentiu quando a bolha estourou fez uma parada ligeira e descalçou a sandália o suficiente pra ver uma pequena marca vermelha difusa baça tinha esquecido os óculos a tarde estava quente já não fazia questão de fingir compostura sabia das costas arcadas dos ombros caídos do andar arrastado piorado pela bolha pesava olhou para trás e seguiu com os olhos o caminho do visco opaco cheio de rasgos em seu interior que vinha do portão até seu calcanhar só cinco quarteirões bastavam cinco quarteirões onde ser a lesma que passava e voltava mais nada pela janela da manhã que tinha sido já quente como a tarde olhando pela janela tinha guardado o sorriso sem sabor da última foto a última foto a última foto e onde mais andaria senão ali nos cinco quarteirões senão naquela mesma cidade onde se escondia da vida você pôs o envelope no correio ele sempre perguntava se tinha feito as coisas porque sempre sempre sempre esquecia de fazer as coisas as coisas mais bobas esquecia mas sabia onde procurar o que fosse de pensar pensar pensar e nunca saber no quê depois de quinze minutos depois de quinze minutos já estava em outro lugar espaciado tão diferente que as pessoas dela já eram tão outras que deviam ser assim quando se pensavam deviam ser daquela matéria de visco como ela que rastreava e encontrava a mesma princesa que dormia e dormia depois de fazer as unhas vermelhas e dizer a ele antes de sair que de tantas coisas a dizer o que não se esquece e persiste são as enormes reticências estamos nessa casa há três ou quatro meses e ver as coisas se quebrarem tornarem a se juntar se estabelecerem de maneiras diferentes deixa todas essas reticências vagando sem serem ditas a solidão imensa e que precisam de algumas horas da tarde para perderem o rumo toda a madrugada tantas cores ventos e uivos neblina espessa às vezes outras chuva fina que o corpo sequer sente uma bela coberta por véu de gaze um corpo lascivo se debate em meio aos livros da mesa até chegar à toda sua umidade branca dilaceramento e ódio sorriem através das pernas abertas