Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

terça-feira, 28 de abril de 2009

Primeiras horas


Fabiana Miraz. Cupe, Pernambuco, 2008.


nunca acordava seca:
fora da cama
andando pela casa
pré-vinha aos passos
murmúrios de águas

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Espera do fim do dia


Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Rosas, 1925.


encostada na borda do chafariz seco da praça corria um giz no ladrilho vermelho ia e voltava ia e voltava a luz diminuía oca na surdina do céu e o vento acompanhava as voltas da mão dela segura e distante no fundo do olho no ponto cego do olho engolia uma pequena mágoa um pingado de ciúme que distraía no vazio do movimento gago que ia e voltava ia e voltava o giz acabou junto com o dia dilatando o ponto cego do olho jorrando o ciúme em espumas de leite em cólera amorosa de negativas impossível continuar encostada ali levantou assegurando a curta faca na cintura de elástico da saia florida não viu a lua amarela que subia em suas costas quando começou a tropeçar os passos pra fora da praça pra dentro do corpo do amante

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Passagens


Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932).


derreto aqui
os pedaços de sabão
sobrantes dos banhos infantis
deixo na forma colorida
os riscos minúsculos
das palmas
grudado na bola
junto do suor pueril
das axilas antes dos beijos
dos dedos intrusos e esperados:
objeto de caixa de fundo de armário
pleno de digitais

terça-feira, 7 de abril de 2009

discussão


André Kertész (Budapest, 1894-1985) Distorsión 34, 1933.


andava quase em cambaleio
sentiu quando a bolha estourou fez uma parada ligeira e descalçou a sandália
o suficiente pra ver uma pequena marca vermelha difusa baça tinha esquecido os óculos
a tarde estava quente
já não fazia questão de fingir compostura sabia das costas arcadas dos ombros caídos do andar arrastado piorado pela bolha
pesava
olhou para trás e seguiu com os olhos o caminho do visco opaco cheio de rasgos em seu interior que vinha do portão até seu calcanhar
só cinco quarteirões bastavam cinco quarteirões onde ser a lesma que passava e voltava mais nada pela janela da manhã que tinha sido já quente como a tarde olhando pela janela tinha guardado o sorriso sem sabor da última foto
a última foto
a última foto
e onde mais andaria senão ali nos cinco quarteirões senão naquela mesma cidade onde se escondia da vida
você pôs o envelope no correio ele sempre perguntava se tinha feito as coisas porque sempre
sempre
sempre
esquecia de fazer as coisas as coisas mais bobas esquecia mas sabia onde procurar o que fosse de pensar pensar
pensar e nunca saber no quê depois de quinze minutos
depois de quinze minutos já estava em outro lugar espaciado tão diferente que as pessoas dela já eram tão outras que deviam ser assim quando se pensavam
deviam ser daquela matéria de visco como ela que rastreava e encontrava a mesma princesa que dormia
e dormia depois de fazer as unhas vermelhas e dizer a ele antes de sair que
de tantas coisas a dizer o que não se esquece e persiste são as enormes reticências
estamos nessa casa há três ou quatro meses e ver as coisas se quebrarem tornarem a se juntar
se estabelecerem de maneiras diferentes deixa todas essas reticências vagando sem serem ditas
a solidão imensa
e que precisam de algumas horas da tarde para perderem o rumo
toda a madrugada tantas cores ventos e uivos
neblina espessa às vezes outras chuva fina que o corpo sequer sente
uma bela coberta por véu de gaze
um corpo lascivo se debate em meio aos livros da mesa até chegar à toda sua umidade branca
dilaceramento e ódio sorriem através das pernas abertas