Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sábado, 4 de outubro de 2008

Interior 9


Tina Modotti (Itália, 1896 - 1942). Madre e hijo, 1929.


Refugava transeunte a caminho. Perninhas encaixadas no quadril floral. Berrando feito bezerro desmamado. Coando o amargo com a voz de calmaria. A mãe. Reconhecida e gastada. Boi boi boi. Boi da cara preta. E o boi não pega a criancinha. Cortaram o pasto. Tem asfalto. O menino a cavalo leva os bois mais longe. Atravessa o canteiro da avenida nova. O fio fino continua. Boi boi boi. E o bezerro desmamado. O carro buzina. Céu de fim de tarde.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Adeus


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Phoenix Recumbert, 1968.
Conto publicado em A Garganta da Serpente.

E não é por não te querer mais. Só que a única coisa possível de te dar por algum tempo é esse rosto seco e duro que restou depois de metido no chuveiro e onde talvez tenha me permitido alguma lágrima. Não é por mérito ou por força ou por fraqueza. As medidas só existem como tentativas de definição e eu sempre busquei em você as sobras que não cabem, aquela última luz laranja do dia que por descuido a gente olha e não guarda e segue. Não é pelas mulheres. É por descaso das palavras e dos gestos, esa arquitectura de la nada, encendiendo sus lámparas a mitad del encuentro. Não é raiva. É decepção por saber que seja qual for a decisão que tome por você, será aceita sem uma palavra que me contradiga. E o que restar não passará de um desconforto, um incômodo, uma pequena pontada no seu estômago que os afazeres do dia farão esquecer e que por qualquer motivo sutil a memória trará em relâmpago, deixando o esforço por se lembrar dos restos perdidos. É por me recusar a ser a única doadora. É por não ser capaz de me recolher no teu abraço sem ter já a boca pronta pra dizer que vai embora. E não é por estupidez que as minhas esperas patéticas e inúteis ainda vão durar por algum tempo. Mas é por falta talvez, que você não esteja entendendo esse adeus.


Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Fechou o portão e não parou depois de trancá-lo para ver os passos que iam pelo asfalto cheio da garoa da madrugada. Tomara, tomara que não. O sinal gritava sempre um minuto antes, sempre roubava o minuto e isso era imperdoável. Logo depois o inspetor que acabara de soar o sinal já estava parado olhando pra cara de todos com um dos ombros encostado no batente da porta, com a lista das classes e os horários das aulas nas mãos conferindo quem estava, quem faltava, resmungando de mau humor e aumentando o dos outros que já não era pouco aquelas tantas da tarde. Era sempre aquilo e ainda o engolir do café frio no copo de plástico, atravessar o pátio pensando que podia ser melhor, que um dia vai ser melhor senão não vai dar, senão se perde, e o perder e ganhar ali era uma trama, um conluio do qual sempre se participava e do qual sempre se era externo. Boa tarde. Eles ouviram ou não. E aquilo era uma relação humana. Humanamente bruta. O caminho percorrido por anos com chuva com frio com muito calor com alguma esperança triste, la tristeza que tuvo tu valiente alegria. Uma valente alegria encerrada em envelope verde e jogada em frente àquela porta. Na última tarde antes das férias fez meia-volta no caminho da casa e buscou pra si uma rosa. Voltou A Moça com a Flor, de mãos envelhecidas com uma rapidez que foi capaz de assustar e constranger o amigo por dois anos distante. Assustar e constranger. Uma espécie de Ms. Delloway, editora da história. Complicadora da história. Entrando pelo portão voltou até a madrugada anterior e Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Tomara, tomara que não.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Declaração (trecho)


Cristiano Mascaro (Brasil, 1944). São Paulo.


Se ela estivesse ali, diria que sabia que agora ele abriria a cortina da cozinha, porque a chuva começou e com ela o escuro do dia. Que só assim abria a cortina da cozinha, quando vinha muita água. E era o fim do dia com muita água. Com as mãos apoiadas na pia gelada ficou olhando lá fora e pensando nela e no que ela diria. E sentia tanta raiva vindo de um jeito desacostumado nele que encheu o peito de ar e custou a soltar outra vez. Suja de respingos de café, amarfanhada das leituras a carta em cima da mesa. Um pedaço, um destroço que se materializava:

Eu sou pior. Pior que essa cara gelada que te deixei ver hoje. Muito pior. O que eu quero é egoísta. E você vê isso com muito mais clareza do que eu posso ter. O que disse é só um pouco do que tem guardado sobre mim. Deixou que eu soubesse só disso, com a cara escondida no escuro da sala, revirando os dedos pelo rosto. Viu como eu sei: é o que as tuas mãos calmas me diziam. E você se perde nisso que não tem nome, nesse espaço que é nosso. Que sim, temos um espaço. Estranho. Ele existe nisso que não entendo. A sua percepção é boa. Certeira. Você me passa a idéia de nunca se confundir. De sempre saber o que deve fazer. Mas isso não protege. Nunca. Veja, hoje você precisou de mim. Precisou que eu te desse a minha energia. Mas eu não dei. Porque estou comodamente recebendo de você. É isso que quero. Receber de você o meu alívio. Egoísta. Mas você não diz. Eu queria que você dissesse. Sabe. Aquele começo de arrepio que dá por dentro quando a gente sabe que vai ouvir uma coisa indesejada, uma coisa que vai nos deixar mal. É uma volúpia. Eu quero que você me diga que não gosta. Que aquilo pra você não diz nada. Você quer dizer agora, às vezes você diz indiretamente. E já sei que quando você disser vou fazer cara de quem tenta não se ofender. E vou sentir raiva. Vou congelar de novo. Sabe o que é? Hoje foi também. Cara de quem não gosta de ser contrariada. Ainda mais por você que está aí pra me fazer me sentir bem. Que não deve me dar incômodos. Egoísta. Esse será meu mote agora. Isso foi uma resposta? E eu direi que não. Que é por tanta coisa que não é você. E não estarei mentindo. Isso é assim. As coisas vieram com mais força antes de você. Mas você soube desviar. Infringiu as regras. Excitante como uma ameaça.


segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Interior 8


Paul Strand (EUA, 1890-1976). Katie Margaret MacKenzie.


Quando a menina era menina gostava que a mãe lhe dividisse os cabelos ao meio e fizesse um pequeno coque de cada lado da cabeça. Usava o vestido de xadrez miúdo, laranja e branco até os joelhos. A sandália era de couro marrom e ela queria que fossem sapatos brancos de fivela. Com o dinheiro enrolado na mão direita e as recomendações do pai pra prestar atenção na rua, não conversar com estranhos e voltar o mais rápido possível porque ameaçava chuva forte, a menina foi. O caminho cotidiano se mostrava pela primeira vez. Séria e compenetrada fez a compra em menos de quinze minutos, mesmo tendo esperado um pouco na fila da padaria do mercado. Iniciou a volta estampando a descompostura exultante da satisfação por ter feito tudo sozinha. Reolhou as coisas do caminho ainda mais uma vez outras. E sentiu a barriga gelar quando a pedra do jardim de uma casa andou. Diminuiu o passo e a respiração. Sem muita demora a memória das ilustrações dos cartões dos Chocolates Surpresa lhe acorreu no reconhecimento do enorme jabuti. Sem prestar muita atenção aos próprios movimentos, sentou-se na calçada em frente ao bicho, estendendo o saco pardo com os pães ao lado. Anos mais tarde não saberia dizer o que exatamente observou no animal. Provavelmente os detalhes dele. Deve ter achado que parecia um homem velho e triste. A lembrança voltaria nítida quando o jabuti já entrava outra vez no mato alto do jardim e a voz gritada do pai lhe alcançava ao mesmo tempo em que sua mão, que com um só puxão lhe pôs em pé. E ainda os grossos pingos da chuva. Outra vez a memória cede. Não recorda o que lhe foi gritado, mas o rosto vermelho do pai que grita lhe causa vertigem. Sabe que deve uma explicação. Sente raiva e um impulso tremendo de esconder dele o jabuti: queria alcançar a margarida branca. Foi de volta pra casa soluçando um soluço que doía a garganta. Enquanto a menina foi menina, voltou muitas vezes secreta até a casa do jabuti.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Preto no Branco (trecho)


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). El espiritú di Licabeto I, Atenas, 1937.


Queria fumar no degrau branco da cozinha. Ver a chuva afogando o mato do fundo da casa, estragando as rosas abertas. Mas não tinha cigarros. A fineza da sombrinha servia minha ausência. Foi com ela que saí pra baixo d’água. Achei a padaria ainda aberta. Eu não sorri pra moça do caixa naquela noite. Eu não vi a moça do caixa quando estendi a mão molhada e vi mais que senti as moedas do troco na palma. Queria voltar e sentar no degrau branco da cozinha. E fiz a volta longa. Não era costume, mas servia à minha ausência. Parei sob o toldo da barraca de caldo de cana fechada. Resolvi acender um cigarro ali. Só me dei conta das pernas das calças molhadas até os joelhos quando me apalpei procurando o isqueiro que não estava. Aliás, nem as chaves. Imaginei o chaveiro grande e brilhante se balançando do lado de fora da fechadura do portão branco. Como muitas vezes. A mão da prostituta tinha um isqueiro e acendeu o meu cigarro. Ela eu vi porque a minha ausência reconhecia o branco leite do esmalte dela. Ela fumou também. Olhou a chuva de frente e os meus pés em chinelos de esguelha. Eu também me olhava de esguelha e a chuva de frente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Café


Henri Cartier-Bresson (França, 1908- 2004). Martine Frank, Paris, 1975.


levantou os olhos de dentro da xícara carijó
enganchou de viés uma braveza nem sabida
trouxe o revés de direito
na boca vazante do pressentido
não pede nem deve
o consentimento pro uso do possessivo

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Trecho de conto


Eugène Atget (França, 1857-1925). Intérieu Avenue Montaigne: la cuisine, 1910.


Naquela manhã do dia 21 de junho abriu a janela da cozinha com descuido de coisa costumeira. A pequena janela de vidro sujíssimo que guardava alta a parede da cozinha. E aberta a janela e as narinas, inspirou fundo e trouxe o frio pra dentro do corpo em pequenas agulhas de cristal azulado, sapatinhos de pregos perfazendo o interior oco do corpo. Foi como se cócegas espasmassem a casca da velha protegida em coisa de lã. Sentiu doer repentinamente o canto esquerdo da boca, como se recebesse ferimento naquele instante, pra logo em seguida conferir que os latejos eram os mesmos de sempre. Só tinham despertado em atraso naquela manhã aurora.
Em outro lugar não poderia encontrar minha tia.
A voz do menino, mucosa. Procurou a tia por mais de uma semana. Reviu a cidade depois de anos. Ainda podia movimentar-se nela com a memória. E encontrou a casa com a tia metida dentro, azulando o ar com a respiração velha. Não respondia ao menino. Olhava detrás dos olhos parados nele.


sábado, 6 de setembro de 2008

Rasuras


Dorothea Lange (EUA, 1895-1965).


girava o barulho dos saltos
cimento gasto
gostar desbotado
desconsolo ponteado no barro
carro de arrasto leve
seus meneios de garça
a mão delatava nas costas:
incidia caprichosa as pegadas mais duras

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Dito impopular


Edouard Boubat (França, 1923-1999). O menino.


numa tal vez
- improviso discreto –
longe foi o relâmpago
travessado pro alto
cegueira de lume
caída nas fuças

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Escrevendo com lápis de cor


Edouad Boubat (França, 1923-1999). Brasil, 1985.


a infância não escreve
desenha letras
desencontra mapas
reconta lugares
e não

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Sesta


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Rue Vavin, Paris.


Foi um baque. Só um. Pela janela a menina viu a semicúpula que cobria a cabeça. E o hálito quente do resto de respiração que vazava dela. Sentiu os rumores da casa nas palmas das mãos que seguravam o parapeito. Antes das vozes atingirem a rua era único o som do cansaço que chiava pelas pedras quentes.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Ritornello


Eugène Atget (França, 1857-1925). Corsets, Boulevard de Strasbourg, 1912.


À Ligia C.

café das cinco frente a frente na mesa
sem vento sem sol
conversa sussurrada de origem perdida
longevidade remoçada em décadas
polindo com a manga da blusa
o espelho de cabo torcido
esfera pequena refletindo mil rostos
moeda virada: reverso da Iara.

domingo, 17 de agosto de 2008

Do outro jeito


Sergio Larrain (Chile, 1931). La sirena.


eu sou do outro jeito
não me são dados volteios e salamaleques:
inspiração ao canibalismo
oferecimentos das postas pulsantes
cruas.


quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Pretensão


Dorothea Lange (EUA, 1895-1965). Trabalhador itinerante de algodão, Alabama, 1940.


os dias ventados de agosto
num leva e traz
redemoinham lembranças fora da coleira:
um saber de argila fina que desmoronou tarde
passo após os cacos e o reencontro triste
com olho vazado preso pelo nervo
exposto

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Oco


Sergio Larrain (Chile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.


costume da voz correr esses caminhos
mares montanhas cerrados planura seca
viva e plena
não chega nunca mais, meu bem,
vibra longe longe
e só vai.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Queres


Albert Renger-Patzsch (Alemanha, 1897-1966). Bosque em novembro, 1934.


mulher fiando o quinhão
sabe ecos dedilhados
ajusta radares
leva recados
descorporificada

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Rodoviária


Foto: Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002).


A dona Zeli enchia o espaço ao redor do orelhão com a sua boca sem dente algum, com seus pés bailarinos de desespero sem calçado algum. Dona Zeli era a protuberância do espaço de trânsito. Era o estável no seu desalento chorado à pinga. Fez o homem sério ao meu lado se mudar. Tentou antes algum olhar cúmplice comigo. Encontrou meu encanto desarmado borboleteando dona Zeli.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Nau


Foto: Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002).


singrando os riscos
brilhos puídos do visco
caramujeio na carapaça defunta.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O ciclope cego (trecho)


Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Blumenbachia hieronymi - Loasácea, cápsula de semillas abierta.


Quando sua memória parecia entorpecida pensava e depois se dava conta de que não era mais que uma lembrança. Que sempre tinha sido a mesma resposta no mesmo momento de desespero, a pergunta sempre a mesma pra mesma resposta, nem a inflexão era outra e sim poderia ser, era um perder-se de possibilidades sempre invisíveis ao toque cego desses momentos repentinos. E quando abria seu único olho: a mesma resposta estampada em um rosto de único olho impossível de reconhecimento, a risada soando longa e lenta e estranha aos ouvidos despertos pela curiosidade.

Livramento


Mariana Yampolsky (EUA, 1926-2002)."Así la construí". Tzicatlán, Puebla, México.


secreto no palato

o ato:

palavra secreta coágulo

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Fátuo


Werner Bischof (Suiça, 1916-1954). A bailarina Anjali Hora, Bombay, Índia, 1951.


Estufo o peito
no trago
cigarro-de-palha
fogo-neblina
grunharpeja


na tumba corada
o desejar surpreendente
quindarfa.

terça-feira, 17 de junho de 2008

inerência

Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Polvo, Corfú, 1938

hoje ele apareceu sem o siso
entre os olhos e dizendo
que me vendo ler lá na mesa da cozinha
pressente envolvendo minha cabeça
um escafandro foscotransparente.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Lembrança do presente

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999).

Descida da rua (quando o próprio de cada caminhar se intensifica), percebeu o acento inscrito com a perna direita. Subitamente reavi (e no subitamente tantos reempossamentos poderiam caber) a sala do médico e as medições. Talvez uns milímetros de diferença encurtando a perna direita. Sugestão suficiente ao corpo que criou seu soluço no móvel. Curto suspiro de desafogo do peso todo que é ir. Entre as risadas o manquitola. Minha gagueira descoberta e transposta. No que é permitido contínuo no trato de esvair e reencher, o quebrado de tantas vozes. Retomadas outras. Exuberância invisível de repente apontada como uma cauda de pavão recolhida. Agora fui uma girafa manca.

sábado, 7 de junho de 2008

Interior 7: dos epítetos


Tomás Camarillo (Espanha,1879-1954). Poyos – Plaza.

Sofro do mal de ter gosto por lugares pequenos. Um gosto volátil. Ver as praças e vielas, as casas velhas e os quintais de cachorros modorrentos e estridentes, as feiras das sacolas desfiadas, os velhos do carteado e do dominó, as velhas das linhas coloridas, de crianças impertinentes e vergonhosas, as faltas e sobras dos adultos, o desequilíbrio, as árvores esquálidas e de fronda amarela de pequenas flores que me agarram no pulo da passagem. Vejo ser puxado do meu corpo um pequeno pedaço de melancolia destilada numa terrível inquietação. Nas capitais eu estou nos lugares enrodilhados. Separo e me segrego. Tenho minhas escalas de vivência. E o jogo de alternância entre elas é sempre arrebatado pelas sutilezas. Já aberto o portão de casa pra voltar da rua, escuto a Viúva do Italiano me chamando da esquina. Desce a rua com sacolas pesadas. Quer saber se eu quero manga. Foi até o parque municipal buscar das mangas pequenas que são as melhores. Entra na varanda e vamos colocando as frutas, que são pra mim e pro menino, no banco azul. E a mulher fala baixinho. Ela ri tranqüila e eu sou menina na rua. Os vizinhos são O Italiano, Os Filhos do Italiano, A Mulher do Italiano. O Gigante Violeiro, um negro enorme, sempre de chapéu de palha, que me põe medo quando tira as caixas de abelhas da vizinhança com as mãos e uma risada sem som: o rosto aberto num sorriso largo e calmo cercado de abelhas nervosas, visto debaixo pra cima, me paralisa. A Mulher do Colar, que depois descobrimos ser um colete pra coluna. A Bruxa Da Casa de Tábua, que joga urina do penico na rua. Pela Viúva do Italiano, soube que eu e minha irmã somos As Meninas do Dentista. Ela me conta dos bailes onde encontra os namorados e me surpreende. Aí também soube que eu cresci de alguma forma, também fora da casca, que agora sou a Viúva do Homem Vistoso, Mãe do Menino Loiro. Sou mais uma das mulheres que cria seu filho no feudo da rua. E que todo esse agregado descritivo próprio da nossa memória trovadoresca vai continuar.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Conjugação de expressões

Foto: Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). Rue Mouffetard, Paris, 1954.


- Deixa eu ver o que você escreveu?
- Nem que a vaca converse em vacatusseis!

domingo, 1 de junho de 2008

O cerco


Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956).


Sigilo rotundo bordejando o grito
magro de dizer da vida
querela de mim seguindo
mesmo corpo
passo
atrás do passo único
som seco
não retumba
cercamento de vida esvaída
no que eu grito.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Ode aos meus recantos

Foto: Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002). Maguey.

elefantes e rinocerontes
não cabem no meu deserto
diminuto corpo árido
carreiras de formigas cortadeiras
letais pontadas tocaiadas.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Das reverberações

Foto: Ywgeni Khaldei. (Ucrânia, 1917-1997). Französische Strasse, Berlín, abril 1945.

Uma reportagem em jornal estrangeiro, 2003: no silêncio que o vento batendo no microfone da câmera oprime, dois jovens iraquianos caminham sobre os cacos abundantes da pequena casa, onde poucas horas antes encontraram os corpos de seus pais e do irmão mais novo. Pisando atentos os escombros (o som dos sapatos escorregando pesados nos restos de construção que sedem ao peso dos corpos compõe com o do vento no microfone da câmera) procuram por documentos, encontram fotos, pedaços de papel, e dizem em um inglês singular das lembranças desordenadas que o luto tão recente descobriu. O jovem mais duro abaixa e pega um livro. Depois de olhar a capa por um tempo interminável só coberto pelo vento, diz que o pai, que não gostava de ler, só lia aquele poeta espanhol que tinha perecido numa guerra. Abre o livro e encontra o que queria. Olha de frente a câmera e lê em árabe, língua tão própria ao poeta andaluz. Joga o livro de volta aos escombros sem olha-lo. A câmera fecha na capa do livro: em fundo vermelho forte, a foto mais conhecida de Garcia Lorca em verde.

domingo, 25 de maio de 2008

Cartões russos (trecho)

Foto: Horacio Coppola (Argentina, 1906). Calle Victoria esquina San José, 1936.

Uma cidade é sempre uma invenção tão pessoal quanto as vidas que comporta. Lembrava-se da cara que fez, de Carmen ouvindo a música do destino nas cartas ciganas, quando encontrou os versos de Tarkóvsk no emaranhado das cartas-cartões, lívida e corajosa. Duas linhas em caneta tinteiro, em letras similares ao que já havia visto talvez um dia quem sabe onde perdido no seu tempo que foi se prolongando.
Pediu a informação ao garçom. Sério e solícito, ele disse que não sabia dizer, mas iria ligar para o serviço de informações da cidade. Da mesa onde estava, através da grande janela de vidro fosco, cheia de cartazes e adesivos e cardápios (: El Rincón Del Cacique, Savarin Turismo compromiso por el servicio de calidad, Super Mila huevo frito ensalada 2,99, Fiesta Gaúcha, Hotel Europa a metros del obelisco, ponga línea celulares tajeta de 80, La Perla café-bar-minutas, Tango show Humberto 1º 489), pode observar o homem ao telefone. Voltou minutos depois com um pequeno papel: colectivo 28 + Maipú. Ainda gesticulando como quando ao telefone, com os olhos muito escuros mantidos baixos no papel, e com o movimentar interrompido e várias vezes brusco do bigode tão longo que lhe escondia a boca, disse que deveria descer na segunda parada, dobrar a esquerda logo no fim da mesma quadra. Poderia ver o prédio na esquina. Entregou o troco do café, agradeceu, mal ouviu os agradecimentos pela informação e voltou-se em direção à porta estreita do café, sempre vago, fugidio, sem paciência, cansado. No limite entre o toldo do café e o céu nublado, as pontas dos sapatos de pequenos saltos começavam a receber a fina garoa, que ia se espalhando e descendo pela superfície até fazer a volta do solado, e isso fez com que ela parasse.

sábado, 24 de maio de 2008

O lagarto

Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986). Troncos.

Tinha o rosto macilento e suas roupas nunca pareciam suas. As saídas de casa eram sempre rápidas, furtivas como os olhos. Quando precisava andar mais de um quarteirão, percebia-se nitidamente o desconforto nas mãos que percorriam os braços ou puxavam a barra da blusa. Sua voz tentava um tom mais baixo, mais suave, mas sempre soava falsa e constrangia. Não tanto quanto sua risada. Surgia tão despropositada e infame, nervosa, e terminava com uma espécie de soluço que se prolonga até sumir. Quando conversava mantinha uma seriedade distante, presa não no que ouvia, mas na rigidez de seus próprios juízos. Suas relações eram estúpidas. De cada frase, gesto ou assunto das pessoas que ainda restavam ao seu lado, tirava horas de um monólogo exaltado e inútil, onde sempre deixava claro o quanto as pessoas aproveitavam de sua bondade e disposição para ajudar. Era a única que acreditava nisso, mas não importava. Seu rosto congestionava, as rugas ao redor da boca se apertavam e movia os lábios numa tentativa ridícula de sensualidade. Nos olhos surgia um brilho seco, contundente e frio. E nessas horas as coisas que dizia, seus gestos, sua figura, provocavam em quem via uma angústia que conforme sufocava e subia aos olhos, poderia estrangulá-la. Foi num desses momentos que, olhando pela janela, viu um imenso lagarto verde atravessando seu jardim. Dirigiu-lhe toda sua fúria, lhe atribuiu toda a vergonha e desgraça que já sofrera e as possíveis vindouras. Quanto mais berrava mais se irritava com aquela indiferença de lagarto. Foi quando seus olhos quase saltaram com o bombear do sangue e seu grito tornou-se contínuo, que o lagarto soltou rapidamente sua língua. Depois de totalmente enrolado, o corpo foi puxado para dentro do animal, que imediatamente tornou-se imóvel como uma pedra. Suas unhas cresceram em segundos, cravando-o ao chão. Muitas foram as tentativas de tira-lo daqui, mas foi impossível. Então os passarinhos começaram a usa-lo para descansar e os musgos cresceram.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O sonho da noite de chuva de granizo

Foto: Ansel Adams (Estados Unidos, 1902-1984). Mount Williamson, 1945.

Foi uma descoberta lenta o meu sexo masculino. Alto e magro de cabelos claros. Corria junto a outras pessoas. Fugia ao mesmo tempo em que tentava identifica-las. Não sabia ao certo se o que nos unia era a fuga ou se já nos conhecíamos, se éramos amigos. E mesmo antes de ter qualquer certeza, já estávamos todos presos em uma sala retangular escavada na pedra. Na tentativa de fuga havia perdido minha sandália esquerda, por isso fui o primeiro a sentir com mais intensidade algo não comum no chão da sala escura. Sabíamos todos que quem nos perseguia era de renomada crueldade. Comunicávamos essa certeza pelos olhares e gestos que tentavam conter o desespero. O medo era visível em cada um. Eu me via de dentro pra fora e de fora pra dentro ao mesmo tempo, o que me causava vertigem que era intensificada pelo temor do encontro físico com o perseguidor. Mas ele não apareceu assim. O que usou pra nos aterrorizar e dar a certeza de sua real existência e de nossa morte, foi o que cobria o chão todo numa camada espessa que machucava meu pé descalço e nos fazia perder a firmeza no andar: os dentes dos inimigos que mataram. Sem o encontro, o sonho pôde continuar por dias plantado na base da espinha dorsal como volúpia crescente pelo acontecimento brutal ainda indistinto, mas certo.

terça-feira, 13 de maio de 2008

As palavras no menino

Foto: Tina Modotti (Itália, 1896-1942). Fios telefônicos, 1925.

Quando alguém fala louca ou louco
na minha cabeça eu vejo uma corda comprida
que sobe e desce no ar
como a corda balançada pra gente pular.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Verticalidade

Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956). En la acera, 1928.

as ruas têm falta de cheiro, o que me desnorteia
irritadiça calma da manhã, eu descubro, não existiu
nas calçadas todas abertas: desníveis, buracos, estreitezas
espalhadas pela cidade toda obtusa
segurei-me pela gola da roupa tantas vezes
impedindo a cara ralada no asfalto
que encrespou a pele no vento de casca de árvore
pasmada alta no vôo de urubus
sobrancerias maculadas daquele azul descaradamente
desdobrado por cima do mundo

terça-feira, 29 de abril de 2008

Desabafo

Fotomontagem: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956). A crisi, 1923.

Em todo canto é cão de pata torcida arrastada pendente. Pequeno sujo mole. Em todo canto é cão de pena perdida. Pisada na fronte. Cuspida em bueiro aberto. Rachando ao sol do deserto ventoso luminoso de restolhos. Dos cães que enchem os cantos de uivos sarnentos. E ele grita: não ti mete sai daqui. Dos esfomeados ganidos de raiva espumosa babada na ferida. Que é a minha: sai daqui. Dos cães das valas e churumes de sacos pretos rasgados. Fendidos ossos. Deles que povoam morrem desabam. Amam. Deles que são todos nossos. Deles o nosso. Tiro pela culatra. A cara mais suja. A cara mais lavada. A cara dura. Coice de mula. Mãe, tira daqui o muleque, mãe! Tira você daqui também, dona sinhora. De que coisa é feito? Cão medroso. Cão de merda. Tira daqui que a briga agora é de cachorro grande que nem eu. Tira o menor daqui sua mulher, que esse otro, ele deve! Num chora agora que já era.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Cotidiano

Foto: Sergio Larrain (Chile, 1931). Valparaíso, Chile, 1963.

Andando na calçada (pé pesado de não querer ir), seguiu a luta lenta das lufadas do vento de outono com as distorcidas mal acabadas asas da borboleta abóbora, abalando em semicírculos pesados o caminho que intensionava reto o passante, pelo trôpego apego insistente aos seus anuais minutos de um dia retidos pelo reto e branco muro tocaiado, findando em tombo a tarde ocre de pleurisia inflamada.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Noturno


Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976).

A Garganta da Serpente: http://www.gargantadaserpente.com/toca/poetas/priscilamiraz.php?poema=3

Deitada ao contrário na cama,
cabeça pendurada
e vaga,
leve pressão da madeira na nuca,
raivosamente ignorava o que dizia você lá do outro lado,
e distraía o que fosse de pensar
com o cuidado trabalho dos dedos nos cabelos,
fazendo e desfazendo o trançado.
Sua voz sem sentido pungia nos ouvidos,
enquanto os olhos caíam à margem das palavras,
pesados de sono e desistência.
Assim,
som sem rosto,
foi você naquela noite
a certeza da obrigatoriedade da mentira.

sábado, 19 de abril de 2008

Confirmação

Desenho: Igor Miraz de Souza Dias. Abril de 2008.

Ver: http://descontinuoreverso.blogspot.com/2007/11/as-coisas.html


- Eu disse que foi o Saci, num disse mãe!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Trecho de conto sem nome

Foto: Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Gafas de sol, Vierwaldstättersee, 1936.

Despencou do maleiro do guarda-roupa a coberta de lã cinza axadrezada em verde e preto. Nas pontas dos pés abria aquele maleiro e de imediato o mal guardado lá lhe vinha por cima. Enquanto arrumava a cama pra dormir, com a luz fraca do abajour acesa no criado-mudo, percebeu que tinha silêncio. Poucas vezes o barulho ininterrupto daquele corpo que funcionava do lado de dentro dos óculos lhe permitia pensar que ele não era ouvido desse lado onde o direito do corpo vivia, com os óculos sempre metidos na cara. Foi dessas percepções bruscas daquilo que desde a infância vamos descobrindo. Que ocorrem com certa freqüência durante o percurso. Parou ali, com as pontas extremas da coberta seguras nas mãos imóveis, enquanto o pano pesado desdobrava lentamente, caindo suave, os olhos revirando pra cima e pros lados, esperando. Constatou que realmente tinha silêncio. Insistiu na constatação até que este invisível surpreendido lhe apertou as formas de carne. Aí se lembrou, continuando a onda de assombros, porquê essas consciências vão e vem, não sendo passíveis de convivência. Só se pode lembra-las. Lembrar de que existe o que imobiliza no mais simples, e assim saber valioso o óbvio.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Interior 6: transvendo o trem caipira

Foto: Eduard Weston (Estados Unidos, 1886-1958). Concha, 1927.
Texto publicado sábado, 12 de abril, no suplemento cultural Algo mais, do jornal Diário de Assis: http://algomaisculturalassis.blogspot.com/
Também em Catadores Caipiras: http://catadorescaipiras.blogia.com/temas/transvendo-o-trem-caipira.php
Depois de assistir ao documentário do antropólogo argentino Alex Portugheis, Catadores Caipiras, senti ecoando os versos de Manuel de Barros: “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. / É preciso tranver o mundo.”
O trabalho de Alex em Assis começou em janeiro de 2007, quando filmou o cotidiano dos catadores por um mês. De volta a Buenos Aires, tinha horas de material gravado, modas de viola, a língua portuguesa mesclada ao castelhano, e muitas lembranças de um Brasil que não chega aos noticiários estrangeiros. O que resultou desse trabalho ele nos traz agora: sua “transvisão”, a tão necessária desnaturalização do olhar, prerrogativa para a criação de possibilidades e de ações. É um olhar estrangeiro sobre nós que impõe questionamentos novos, nos fazendo repensar o lugar-comum justamente quando nos mostra o que nos circunda através das mudanças de perspectivas nas interações sociais na luta dos catadores pelo reconhecimento do seu trabalho: os bairros, a cidade, a região, o país. No documentário, O trenzinho caipira, música de Villa-Lobos e poema de Gullar, segue como o caminhão da Coocassis, transformando para continuar.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Translineação

Foto: André Kertész. (Hungria, 1894-1985). Auto-retrato com gato negro, Paris 1927.

Quando sai da redoma das brincadeiras, traz grudado aos cabelos um cheiro de pêlo de gato empoeirado no mundo.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Fazendo caminhos

Foto: Sergio Larrain (Chile, 1931). Valparaíso, Chile, 1957.

Sou alguém que segue uma menina.


Sou uma menina:

que me cegue.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Convalescença

Foto: Manuel Álvarez Bravo (México, 1902-2002). Sábana caída, década de 1940.

Quando a garganta trancava em dor (criança, a mãe lhe amarrava um lenço com álcool e cânfora forte no pescoço), os olhos atravessavam a janela. A janela que insistia em abrir seca e ferruginosa, de cara pro muro descascado, guardado na casa de esquina: anos, metros, minutos, quarteirões atrás, onde três pequenos vasos lhe engrandavam a visão dos miolos roxo-escuros dos amores-perfeitos, tão vivamente amarelos. Na fraqueza que sentia, o retumbar dos resquícios móveis e sincrônicos da cor amarela que lhe ficavam nas pálpebras fechadas era o provocador do enjôo. Sentia os movimentos dos órgãos e sem se dar conta, vinha o seu esforço em conter, em segurar o pouco do alimento ingerido à força. Depois a languidez suada do fim da febre, a suave sensação de não pertencer mais a nenhum plano definido, claro, fixo. O muro com os vasos era tantos muros e as tonturas de Lídia tantas voltas de seu corpo, tatos indeléveis das idas e vindas da enfermidade desde a infância. A solidão crua, sem rodeios que tinha agora, foi revelada pouco a pouco pela cama de lençóis brancos, pelo cheiro de remédio constante, pelo afago suspiroso dos próximos enquanto dormia arfante e sôfrega, nos sorrisos apressados de preocupação distante, no leve beijo na testa recebido do marido, e se tornou óbvia no instante de um raio, quando tirou os adornos do silêncio do quarto, e escutou o fado chorado em ais, lamentando o destino dos que não nasceram para viver o amor.

terça-feira, 18 de março de 2008

Diálogo Matutino

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). El sueño.

- Sonhei que tropeçava.
- Onde?
- Nos meus próprios pés. Corria e tropeçava. Corria e tropeçava.
- E depois?
- Acordei soluçando.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Jonas na tarde

Foto: Walker Evans (Estados Unidos, 1903-1975). Kitchen Wall in Bud Fields House, Hale County, Alabama 1936.
Leia o conto inteiro na revista Germina: http://www.germinaliteratura.com.br/2008/priscila_miraz.htm

A mulher pagou os cinco cruzeiros pela galinha depenada e foi com ela balançando ao lado do corpo, descendo a rua de cenho fechado, envergando um vestido desbotado e uma tristeza recurva. Jonas menino ficou ali no calor da rua vazia querendo descansar. Só não sabia que era mais das amarguras do que da caminhada diária da venda das aves que criava. Via lá no fundo dos olhos a camisa de brancura que o pai usava quando ia ficar fora por muito tempo. No fundo dos olhos fechados, a camisa branca do pai luzia de luz emprestada, porque o pai era fosco. Queria saber de onde vinha a luz que o pai refletia. Achava mesmo que ele tinha pele esverdeada. E tinha raiva porque esse pai voltava e o expulsava do lugar que era dele. Mas um dia ele ia ter o tamanho de homem e ia ser forte.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Augurio

Foto: André Kertész (Hungria, 1894-1985). Martinique, 1 enero 1972.

Estava já tirando a coberta da cama pra se deitar quando sentiu alguma falta. Tinha passado o dia com suas coisas sem mais o que, sem espera, sem promessa. Sem. Continuou movendo as mãos nos afazeres, mas o cenho franzido dizia de seu estranhamento. Tanto tempo de pensamento preso e agora uma soltura branda, lilás. Foi assim que soube que sua solidão era só sua novamente.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Invisível

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).

Todos os desenhos das crianças da classe foram expostos no corredor da escola. Em cartolinas grandes. Eram árvores com maçãs e cerquinhas. Arco-íris em quase todos. O desenho do seu menino era colorido e disforme. Manchas de cores e tamanhos diferentes. Não reconhecia ali nenhuma forma do que fosse, por mais que olhasse. E ele estava ali, ao lado dela, esperando seu comentário. Ela fez foi uma pergunta: O que é isso? E ele, muito direto e impaciente com as incompreenções, como de costume: ora, são os poderes das coisas!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Planos

Foto: Martín Chambi (Peru, 1891-1973). Muro de las cinco ventanas, Wiñay Wayna, 1941.

Quebrando um silêncio de dois quarteirões de sol quente, o menino que andava alguns passos a frente se volta com a pergunta: Você tem certeza de que isso é vida real?

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Desvaneio

Foto: Ralf Gibson (Estados Unidos, 1939). Shadow and man with cane.

Na sensação pouco reparada de distorção das sensibilidades imposta ao corpo e ao pensamento que acontece com certa freqüência em caminho feito diariamente, trocando os passos sem acompanhamento e sem importância, fazendo mentalmente as contas do mês, passou pelo velho cavado no centro de sua magreza, carregado das sacolas de lona suja. Foi arrancada da distância e jogada no meio da rua pela voz assobiada entre os dentes sobrantes: meu coração sente falta de alguma pessoa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Nota

Foto: Mariana Yapolsky (Estados Unidos, 1925-2002). Osario. Dangú, Hidalgo.

Em um gravador esquecido no fundo da gaveta encontrei a voz que um dia será a minha. Minha voz envelhecida no gravador que, de quebrado, foi vidente. O vislumbre da Lívia: entre a sombra da lâmpada da Praça da Bandeira e os cabelos que cresciam, meu rosto de mulher de quarenta anos.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Prévia

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Sem título, 1949.

Cinco da manhã. Só ali, só aquele bar aberto. Levantou da mesa vermelha com distração. Sentiu uma mão alheia escorrendo pelo braço. Soltando lenta e longe a sua carne. Caía o sono com força. Atravessou as poucas mesas da calçada e o corredor que seguia com o balcão e as pessoas sentadas. Todos olhavam a rosa no cabelo dela. Único indicativo do carnaval. Era véspera. Lá no canto escuro da lâmpada queimada tinha o buraco que era entrada do banheiro. Espiou por baixo da porta. Tinha alguém ali. Alguém que não saía. Então bateu, sem jeito. Saiu a moça de blusa azul. No espaço pequeno passou se apertando contra a parede sem ver a outra. O chão ao redor do sanitário estava alagado. Levantou acima dos joelhos a barra do vestido. Agachada via pelo meio das pernas a urina que expelia e sentiu vertigem. Tudo vertia água. Tudo podia se desfazer em água. Depois abriu a porta e deu com a moça de azul ainda ali. Enxugando o rosto com as tolhas de papel. Não da água da pia. Ela chorava. E insistia em enxugar. E chorava. Sem perceber, a que saía parou pra olhar aquele trabalho de Sísifo. Parou bem atrás dela. No espelho surgiu uma rosa branca na cabeça da que chorava. Então ela parou de enxugar, e os olhos cheios fitaram complacentes a própria cabeça onde surgiu inexplicável, uma rosa branca. Elas riram antes de sair dali.