Foto: Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Pecera, Santorini, 1937.
São vários saltos. É a angústia de ter nítida a relação especular do tempo. Todas as suas imagens, todos os seus mundos acontecendo corpórea e mecanicamente. Concomitantes. Eu sei que foi um acidente desses que são comuns na infância. Eu sei, mas eu tremo. Do tremor abissal vêm os pedaços assentados. Eles voltam. Duas vezes, eles voltam. De todas as imagens, a mais terrível volta. E o medo que ela trouxe quando aconteceu. Um medo que é tantos medos quanto são os tempos de uma hora. E o pobre corpo desnorteado só sabe desobedecer. Desobedece ao menino, aquele pedaço de braço que se pendura. Era só uma brincadeira. Um golpe de luta de mentira. Não precisava tanto. Desobedece o meu corpo que se torna resistente e carrega o menino, quando o coração desfalece pálido. E desobedece ainda outra vez, essa estranheza, quando deve permanecer firme diante das aplicações de anestesia local na carne aberta, a agulha entrando no vermelho vivo, o líquido inchando e soltando água do braço aberto do menino. Essa é a primeira volta dos pedaços. A mais rápida. A que atordoa. Depois que o menino dormiu veio a segunda. A que começou quando fui trancar a porta da cozinha e vi no quintal os bichinhos de borracha arrumados nas filas da brincadeira. É nessa segunda volta que acontece a nitidez do encenado. E foi como sentir outra vez entre as mãos a vibração do eco, do estalo seco de dentro da cabeça do marido morto. Desmarquei todos os compromissos da semana. Olho pro menino quando ele não me vê. Enraiveço diante de médicos e advogados pelo mesmo motivo e com a mesma indignação de quatro anos atrás. Maldigo a dependência desse saber que não domino e que me abusa e que faz sofrer. Penso nisso que é a nossa vida e que toma formas tão estranhas a nós, formas que vão se parecendo conosco conforme convivem na memória. Olho pro menino e digo que ele é um doce. Prontamente sorri de lado, uma sobrancelha levantada e responde que sim, que é um doce, mas que às vezes, é salgado.