Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Poema matinal do Rodrigo antes do pão de queijo prometido:

Foto: László Moholy-Nagy (Hungria, 1895-1946).


Ou é

Nalguns dias gosto de leite,


Com café.


Noutros não.


Bom mesmo é cigarro com café


Toda manhã.


Se um charuto é só um charuto,


Café é bom.


Se um cachimbo não,


Não!


Bom é o leite, ou o cigarro, ou...


Ou não.


Será que o café me toma volúvel?


Acho que não.


Também é solúvel e indeciso.


Ou não.


Acho que é o ou não.


Não engano nem dona Canô,


Nego com dois nãos pra afirmar:


Café é bom!


Ou café é cachimbo? ou !


Ou não.


Ou etc.

Poema do amigo Rodrigo Cracco.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Baús, caixas e pastas.


Foto: Leo Matiz (Colombia, 1917-1998). Polígono.

Revirar guardados expande o tumulto de tantos caminhos. Outra língua é a que responde pelo tempo acumulado na poeira e no cheiro que lembramos, e é pouca a previsão de onde vamos tirar a voz de argumentar. A surpresa foi dar com uma serenidade de exaurir o fôlego.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

As coisas

Foto: Ralf Gibson (Estados Unidos, 1939).


Quando criança ouvia minha mãe dizer que, no escuro e no silêncio, os livros da biblioteca sussurravam suas histórias e definiam, a revelia do dono, suas afinidades e seus lugares na estante. Ou decidiam sumir, como outros objetos, entre as nossas mínimas distrações. Hoje, diante de um desses sumiços mágicos, perguntei ao Menegildo se sabia da minha carteirinha da biblioteca (que sumindo assim, me diz do desejo de se esconder, não de um livro, mas de uma biblioteca inteira). Respondeu com um levantar de ombros que, como não tinha sido coisa dele, era muito provável que fosse coisa do Saci, já que anda ventando muito ultimamente. Então segui seu conselho, e acendi uma vela ao Negrinho do Pastoreio.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Acordar

Foto: Paul Strand (Estados Unidos, 1890-1976). Kitchen. Loch Eynort.


Levantou resvalando nos sonhos. Buscou os chinelos debaixo da cama morna e seguiu pelo corredor que impregnou com sua névoa azulada. Translúcida, incorporou os goles de café.

domingo, 11 de novembro de 2007

Leontina 2

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976).

Ver Pensamento, tudo que a mente frutifica: http://pensas.blogspot.com/


Antes do violino cessar, Antonio batia na porta os dois toques curtos, e a Leontina que atendia tinha já os olhos de entrega que ele bem conhecia. E sorria doce do jeito que não costumava ser. Então ele tirava o chapéu de feltro verde escuro e o pendurava no espaldar da cadeira, junto da toalha molhada. Jogava o paletó na poltrona enquanto Leontina tirava as nêsperas - que era um dos tantos mimos constantes que ele lhe trazia - do pacote de papel pardo, e as arrumava, as quatro, no criado-mudo ao lado da cama, junto de um pequeno baú de madeira que era mantido sempre vazio.
Antonio foi surpreendido pelo gostar daquela mulher quieta e séria à braveza, que primeiro lhe foi rude, pra só depois aceitar a rosa única que ele ofereceu já na iminência de desistir, com a frase dita a seco, em seu tom monótono: Sua teimosia junto com o desenho das sobrancelhas me aproxima de Gaetano. Acostumou, não sem antes se bater inutilmente com seu orgulho, ao convívio com o segredo que o silêncio dela guardava e que os olhos tentavam alcançar quando no desespero do amor, fugiam dos seus e fixavam o pequeno baú vazio. Disse a Leontina uma única vez de seu desejo de casar, e a resposta foi no mesmo tom da primeira: não. Apesar de querer insistir, se conteve por saber que ela lhe falaria com sua tranqüilidade áspera o que já sabia, e preferiu não ouvir todas as letras, a história toda, e continuar ali com ela, da maneira inventada por ela de através do amor dele, amar outro homem.

sábado, 10 de novembro de 2007

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tempo

Fotomontagem: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Estranhamento, 1948.


O cotidiano se povoando de visões: alucinações de sons e imagens. O espelho da cômoda multiplica a diferença marcada, pontuada, interrompida. Repassa gritante na superfície que reflete os nós, os traços que foram e serão, numa ausência aterradora do que é. Nas laterais, espelhos retangulares, menores e reguláveis possibilitam ângulos, apostas, encaixes, no revirar dos pedaços. Nesse rogo desesperado de minha orfandade, me alcança um jogo de montar.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Esquecido

Max Ernest (Alemanha, 1891-1976)


O poder de recusar.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Leontina

Foto: W. Eugene Smith (Estados Unidos, 1918-1978). Vila espanhola, 1950.


O que saber de Leontina. Os vestígios encontrei num domingo desgostoso, disfarçada em algum contentamento que por teimosia me obrigava a sentir, empurrando pra insônia seguinte todos os dias e a frustração. Entrei me traindo no quarto de despejo entulhado com Leontina. Tenho ainda sob os olhos a Leontina que me era apresentada como espólio dos anos que vieram dar aqui a nado, da guerra velada que lutaram entre si. E que se estende. E que eu estendo. O que saber de Leontina é pelo interesse em mim mesma. Sentia ferroadas com a exposição, porque tudo foi mostrado e descrito como se eu fosse cega e não pudesse ver a foto no diploma de modista e a data: 1934. Porque tudo foi exibido num descontrole sujo. Na minha cara, com improviso torto, amarfanhado, sorriam entre sufocos de afogados e transformavam Leontina em fábula de moral edificante. As entranhas contorceram, e agora deu que quero saber de Leontina.

domingo, 14 de outubro de 2007

Delicadezas

Foto: Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Laserpitium Siler.


Chuva voltando. A chaleira amassada de tampa perdida chia na chapa de ferro.
Chia, chia, dona cutia: faz o eco das gargalhadas lá do terreno.
Todos correndo atrás dos anus, coitados, que parecem aviões de calda quebrada brecando o nariz no chão.
Quanto tempo a bolha colorida dura no vento aberto?
O presente é um galo pra acompanhar quando acorda às cinco da manhã. Pode falar comigo?
Chuva caiu. Café com bagaceira na xícara dos adultos. A comunhão silenciosa rodeando a mesa. O tico-tico, íntimo, palpitando. Uns suspiros e os cochichos dos brinquedos que descobrem os cantos empoeirados. Foi mais um domingo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Formigas

Foto de Ruy de Souza Dias (São Paulo, 1950-2003). Fez, Marrocos, década de 1970.


Sigo com os olhos os andares das pequenas formigas que invadiram a casa, como em toda primavera. Aqui, na parede a minha frente, em frente à mesa onde escrevo, caminham ondulantes pelas molduras das fotos. Passam recortando pela mulher esmolando na entrada da cidade, pelo menino com a sacola, parado na pose que se sugere improvisada em uma rua de pedras em degraus, e pela velha que segura na boca uma ponta do pano que lhe cobre a cabeça, enquanto ensaia o próximo passo, o que a levará pra dentro de uma das tantas portas estreitas que ponteiam as ruelas de uma Fez dos anos 70 onde morou o pai do meu filho. Com o mormaço amolecendo o corpo, recosto na cadeira pra melhor seguir as indicações das formigas. De uma foto a outra, indo e voltando, me induzem reescrituras das histórias que fui inventando, conforme convivendo, pra essas fotos. A memória invade sorrateira e escuto de novo como foi aquele tempo no Marrocos. Escuto sobre os copos grandes, cheios de água fervente e um ramo generoso de hortelã imerso: bebem isso durante o dia todo, intercalando com as baforadas no narguilé, nas portas das lojas e casas, Priruli, debaixo de um calor de quarenta graus. A voz é a mesma de sempre no jeito único de me chamar. Deixei de me assustar quando o escuto nitidamente. A morte não paralisa e o morto não deixa de surpreender em suas formas. Essas fotos são o olho no olho com o morto.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Idéias Extravagantes

Foto: Man Ray ( Estados Unidos, 1890-1976). A l'heure de l'observatoire - Les amoureux.


Dessas que surgem enquanto os olhos,
entre contenção e desabalo,
desatam os nós do alfabeto composto em línguas.
Idéias atentas aos ouvidos os acompanham até a rua:
Insistência do som: coincide, às vezes
- a boca repete sem pensar, voz intrusa -
é o que cochicho ao teu ouvido.
As contas mensais cansadas e as buscas de quem?
afinal vão se intercalando ao trabalho cotidiano.
Espera duvidosa do esvair-se diante da expectativa
que não tomba nem levanta bandeira branca.
As mais absurdas suposições criadas
pela construção fantástica a remontar histórias.
Fatos e conclusões transcendem ordens e se deliciam
nas desordens de aprazíveis polpas a vazar entre os dentes,
das relações entre - sempre, porque os caminhos
são a composição -
da formosa tormenta conjurada à revelia,
e o princípio inesperado do encantamento desabrocha,
atordoante como uma espiral de sonho
depois da noite insone.

domingo, 7 de outubro de 2007

Interior 2

Foto: Juan Rulfo (México, 1917-1986). Casa, barda y árbol.


Pelos pastos, esparsas árvores. Muitas Farinhas-Secas com seus troncos claros sinalizando a vista de quem vai pela estrada no começo da manhã. Ondulações ligeiras da terra permitem que se aviste os ocos onde se escondem riachos raquíticos e bois deitados. Coqueiros recorrentes. Bambuzal. Com intervalos de cercas, hortas e galinheiros, casas de tábuas de pintura velha com alguma mulher que varre a terra da frente da porta da cozinha guardada pelo Chapéu-de-sol e pela Primavera carregada de flores cor-de-maravilha. O dia desce, mas o sol não consegue romper a poeira que é redoma nos horizontes. O calor paralisou o tempo no meio do nosso peito e é difícil de respirar. As laranjeiras. Um homem a cavalo chega na beira da estrada. Vê que do carro alguém olha. Segura firme as rédeas do animal que entorta o passo pra direita, e acena com o chapéu e o sorriso. A cana enrodilhando vilarejos. Um Tietê calmo e ondulante, que ainda não sabe da cidade de São Paulo, se estende longe e largo. Tanta água parece destoar. Ser pra ela mesma. Isolamento que arrebata o pensamento.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Notícias de antes da viagem

Foto: Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976). Sem título, 1931.

Domingo de manhã ventada e passeio com o menino
As risadas deslizavam quentes do sol
Suamos o caminho da volta.
Ouvimos o jazz e fizemos babaganouj
Comemos
E continuamos as descobertas da mitologia indiana.

Na segunda,
Pensar na mala, na passagem, no trabalho.
O dinheiro contado diminuiu no caminho:
No sebo encontrei as cartas do Graciliano pra Heloísa.
Leio as cartas de amor:


“Eu, como te disse anteontem, não entendo de confissões, nunca me confessei. Mas declarei que estava disposto a ajoelhar-me diante de ti. Imagina que estou de joelhos.”


Em algumas horas estarei na estrada.
Vou olhar pela janela do ônibus
e ficar cada vez mais interior.
Levo em meus lábios o seu silêncio.

sábado, 29 de setembro de 2007

Partir

Foto: Werner Bischof (Suiça, 1916-1954). Acería en Jameshedpur, Índia, 1951.


Sentia vontade de voltar. Mas não. Os pés autômatos iam em frente. E confiou o caminho, apesar de relutante. O corpo mais estranho. Menos seu. Seguiu pelas pedras da rua. Virou a esquina e uma ladeira lhe inclinou pro equilíbrio. As árvores da alameda que beirava o rio, conforme se moviam, aumentavam. Sombreavam a vista. Um banco de praça quebrado estava vazio. Mal sentou escondeu o rosto nas mãos. Mas não conseguiu. Só um ganido. Teria que voltar ao quarto da pensão. Voltar e levar embora o resto. Embora. Súbito, entendeu o que ouvia: a água descendo pelas pedras. Sua mãe lavando a roupa. Seu choro de cara vermelha e boca escancarada na margem. O tombo nas pedras e o ser puxado pela correnteza. As músicas depois que aprendeu a falar. Os gritos do pai no começo da noite. Depois desapareceu. Depois a quietude. Todos os dias em silêncio. Envelhecendo muda, a mãe. Então, o trem no fim da infância. Sozinho. Embora. E já outra vez ia embora. Com o que tinha ficado daquela vida: a foto, a fita branca de cetim. As roupas deixaria pra dona da pensão.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Reaprendendo

Foto: Ileana Gavinoser (Argentina). 2005.


Deixou a lição da escola pra fazer depois de comer o café da manhã. Empurrou a toalha descobrindo um pedaço do tampo branco da mesa da cozinha, e ali abriu o caderno, espalhou o lápis e a borracha. Parei pra olhar distraída entre os goles de café, encostada na pia, de costas pra janela aberta que mostra o jardim seco. O corpo de menino ainda vestido com o pijama, ajoelhado na cadeira, se dobra sobre as letras que vai desenhando, que vai dizendo em voz alta, interrogativo pra si mesmo. Vou me perdendo nos movimentos e na voz dele, no café, no vento leve que me toca as costas, no morno da manhã onde tento acordar. E de lá onde fui parar, lentamente retorno quando percebo que agora ele se dirige a mim, sem levantar o rosto nem parar o que faz: isso não é fácil. Você também achou difícil um dia, só não lembra mais porque acostumou.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Da urgência

Foto: Alexander Rodchenko (Rússia, 1891-1956). Década de 1920.


De um caco de vidro verde encontrado na rua,
Do som do girar do pião do menino,
Do passo indeciso,
Do tilintar dos talheres no almoço,
Do suspiro do corpo cansado,
Das palmas no portão,
Do chacoalhar das folhas impressas pelo vento,
Daquela estrela cantada por Maiakovski,
De toda implicação da vida no grito e na ausência dele.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Salto do alto

Foto: Grete Stern (Alemanha, 1904-1999). Perspectiva, 1949.


Os tombos que seguem a escolha, seqüenciados, embaraçados, nítidos, abismados. E aquele fiapo que fez a diferença se encobre e descobre sibilante, ondulante. Querendo, enjoando e querendo. Caímos de ou caímos no: tomber amoureux; fall in love.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Mimetismo


Karl Blossfeldt (Alemanha, 1865-1932). Aesculus Parviflora.

De uma funda tristeza, esse quente do vento. Desabotoou a camisa que guardava o inchaço desassossegado do corpo. Ele assim, sem a cobertura, procura água. Mas aqui não chove e não tem previsão. Nem bacia. Rio é longe, mais ainda o mar. Aí vira bicho que rasteja lá pro canto escondido, no encontro do muro com as plantas cheias, onde é mais sombreado e fresco. Entredormente dirige os sonhos com oásis e outras frescuras pro deleite, enquanto escuta os cantos das crianças e os chamados dos outros. Hibernado, fingido de morto, sobrevive.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Circulação

Foto: Leo Matiz (Colômbia, 1917-1998). Frida Kahlo.


Um corpo parado por muito tempo no mesmo lugar ilude a si mesmo. A circulação dá uma volta inesperada e muda o ângulo da carne. A cabeça inclina pra posição desconhecida porque impossível no corriqueiro. De tanta paralisia, dimensiona além pra se mover como se movem as plantas.