Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

terça-feira, 10 de março de 2009

indo leve


Dorothea Lange (EUA, 1895-1965).


indo leve
de um tempo teu
abre meus dedos
- pequenas agulhas de medo –
e roça a palma funda
guarde o sussurro que vem de lá
guarde a palavra inventada pra você
fátua
feita de um tempo meu

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Natural


Walker Evans (Estados Unidos, 1903-1975). Wahstand in the Burroughs House,Hale County, Alabama 1936.


lamúria vinda com vento
e café
da velha da casa da esquina
a velha casa da esquina
decompondo musgo e visco
pelos dentes podres
da velha
da lamúria da casa vazada
do cheiro verde do corpo parado
da umidade do chão de café
aos olhos da velha chegam
humores passados nos vãos desacordos
nos desalinhos pregressos
daquela que foi a vida na casa da esquina

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Jano


Grete Stern (Alemanha, 1904-1999) . Made in England, hacia 1950.


é nesse corpo de lodo
o olho que te guarda
a fagulha que ateia
vendaval na sala de estar
a noite densa cerca
faz bruma pelas janelas
pelas portas
desnutre o carnoso do viço
mostra do outro lado
o rosto vicioso
escancarado

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

faze dor


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Autorretrato, 1906.


olhar quebra súbito
sem precedentes notórios
na parede-chão
dos trançados de capim-de-cavalo
da capoeira rala
cacos esquivos
buscam entradas mínimas
do outro lado:
desrefeito

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sem se desvencilhar


Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). México, 1934.


em seqüência rodada
a dita promessa desnecessária
rodopio sem noção da chegada
meu dinheiro colorido em cima da mesa
moedas ali de cobre
o homem na cama sem coloração

sábado, 3 de janeiro de 2009

Como montar um homem


Edward Weston (Estados Unidos, 1886-1958). Untitled Tree Study.


pele-réptil descansa pousada
os músculos em sonho
são mobilidades em contínuo
mesmo depois de morto
o rosto é forjado quieto
e uma mão de dedos duros
está aberta sobre os olhos

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Start


Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). Sidewalk Cafe, Boulevard Diderot.


Para Rafael

esperando na calçada os carros passarem
acendo um cigarro e vejo você do outro lado
indo na direção de um orelhão
andando seu andar que joga as mãos pra trás
falamos de um começo que pode ser
e é uma adivinhação pretérita:
então foi quando
coisas que nos contaremos tão diferentes
deixando os dedos sombrearem rente à carne
atravesso a rua e ando atrás de você
que ainda não me viu
e espero na cadeira do Café Alvorada
cabeça inclinada na meia luz onde aprendo a te ver

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Embarcação


Priscila Miraz. Vitória, ES, julho de 2008.

Para Pedro

hoje as águas da minha casa amanheceram vazantes
vindas da coifa da pia do banheiro
da talha de barro da cozinha
do registro da parede
limpas e abundantes
correndo pra algum mar
que se vê de um porto da Dinamarca
levantando do chão branco
o cheiro da poeira que traz o vento forte
de algum mar que se esconde
num buraco escaldante dessa areia
caminhando no sono tormentoso deitado nalguma ilha
era hóspede perplexa da casa alagada

domingo, 21 de dezembro de 2008

no meio do caminho


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Budapeste.


a esperança usa menos plumas
aos trinta anos
e toma remédios azuis, redondos e grandes
pra dor de cabeça

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Inquietude


Sergio Larrain (Chile, 1931). Paris, 1959.


a espera amordaçada debate
mãos e pés e tronco
não tira a mordaça
engole a própria saliva
e alimenta
pequenos afogamentos diários

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

À moda da casa


Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976).


ainda estou aqui na companhia
da que joga cartas pela janela
e os pombos levam em vôos rasantes
elas caem nos telhados
enroscam em galhos desmancham na água
infiltram nas lajes e gotejam sal
ainda estou na companhia
da que bica os rebocos estufados das paredes
e lambe a areia doente do carcomido
grunhe aos passantes relincha um berro que arde
esconde o rosto na barra da saia molhada do trabalho
ainda estou aqui na companhia
da que lambe os joelhos ralados
pra sentir o gosto do ferro
e me acomodo no canto da cozinha
escuto o rangido da cadeira quando me mexo
escuto o chiar da chaleira que prepara a água
eu bebo a água suja
na companhia da que limpa a terra
que marca o meu rosto
com a palma da mão tão seca tão pobre de mapas
e durante as chuvas das noites
sou eu que durmo em rodilha aos pés da cama

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Pausa


Henri Cartier-Bresson (França, 1908- 2004). Sem título.




. . .

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Gumes


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Black and White Lilies, about 1925.


veio andando de longe com os olhos fitos em mim e achei mesmo que não iria parar, que iria me atropelar com óculos escuros, continuar a carreira desmedida na pressa, na urgência que ele tinha, e quando estacou eu devo ter soltado um suspiro, e com a mesma pressa ele me perguntou, e a tua ferida? sem a minha resposta tinha a minha boca aberta, sentia a ponta da faca entre os ossos da costela, onde esconde tua ferida? e o corpo dobrava sobre o meu, passava gente ao lado, passava gente escondendo, dobrando panos, calçando os pés, onde? eu segurei a faca pelo gume, pelo susto, pelo olho cego, pelo abandono sentido à mingua, segurei a resposta pelo gume, onde a tua ferida? sem os óculos, sem a presa, sem a carreira desmedida, onde esconde tua ferida? ele sentia a ponta da faca entre os ossos da costela.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sentenciada


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Parco dei Mostri di Bomarzo, 1952.


à moda dos antigos castigos:
uma mancha de nascença
enorme mapa avermelhando desventura
carregado nas costas
estigma queimado no útero
mão indelével das tragédias
em cada sorriso o bafejo de Queres.

domingo, 26 de outubro de 2008

Gravura


Hildegard Rosenthal (Suíça, 1913- 1990). Lasar Segall, 1939-1941.


Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava. Pela persiana torta da janela entravam os sons e a força do calor da tarde modorrenta. Vivia onde os homens não têm rosto. Os abraçava pouco. Por uns trocados a mais abraçou o homem a pedido do estrangeiro. Era sempre o seu rosto de frente. Ele queria o seu rosto em preto e branco. Com todos os traços agudos. Zelita se explicitava. Os olhos olhando. O estrangeiro tirava o bloco do bolso da calça e rabiscava o abraço. Um vulto de costas. Uma nuca suava. Um corpo a mais no Mangue. Eles moviam os membros com lentidão. O ar pesava. O silêncio. Salvava os latidos dos cachorros. Um uivo. Uma briga. Ainda estavam no mundo. Depois passava. Os outros quartos murmuravam. As coisas que diziam escapavam. Os pensamentos da madrugada. O que devem pensar os mortos. Zelita pensava os mortos. O vulto do abraço enxugou o rosto num lenço amarrotado. De costas. Esquivou pela porta aberta. Devia se imaginar vivo. Mas Zelita ouvia o que pensava. Ajeitou as alças do vestido molhado de suor. Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Composição sobre a frase do filho


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Livro de Elisabeth.


quando escuto os seus pés
colando e soltando em estalidos
da madeira do chão
(soluços descalços)
quando abre a água do banho
sendo a chuva da casa no meio da tarde
forja o tempo preciso;
contrito
ultrapasso o trópico do corredor
chego ao canto da sala junto à mesa
estendo o corpo no mosaico dos seus coloridos
pequenos pedaços da imaterialidade que é você
secreto te componho e me aposso:
seu mundo faz festa comigo.


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Notas cotidianas


Horacio Coppola (Argentina, 1906). Buenos Aires, Frutería, 1936.


Anúncio de loja de mel, Buenos Aires:
“La lengua es la peor parte del cuerpo: adúlcela”

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Visão


Grete Stern (Alemanha, 1904-1999) El ojo eterno, hacia 1950.


criança vê com as mãos
solução das mãos pro desconfiado
cambaleante pelas imagens cotidianas
olhos-faringe esgotam
amparo os olhos com as palavras das mãos

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Assassinato


Bill Brandt (Alemanha, 1904-1983). Campden Hill, London, 1949.

depois de limpar os cantos da boca
no guardanapo de pano
matou
sem o aconchego da tristeza
(sua existência)
tinha à frente do corpo
a fria figura de um homem comum

sábado, 4 de outubro de 2008

Interior 9


Tina Modotti (Itália, 1896 - 1942). Madre e hijo, 1929.


Refugava transeunte a caminho. Perninhas encaixadas no quadril floral. Berrando feito bezerro desmamado. Coando o amargo com a voz de calmaria. A mãe. Reconhecida e gastada. Boi boi boi. Boi da cara preta. E o boi não pega a criancinha. Cortaram o pasto. Tem asfalto. O menino a cavalo leva os bois mais longe. Atravessa o canteiro da avenida nova. O fio fino continua. Boi boi boi. E o bezerro desmamado. O carro buzina. Céu de fim de tarde.