Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Start


Henri Cartier-Bresson (França, 1908-2004). Sidewalk Cafe, Boulevard Diderot.


Para Rafael

esperando na calçada os carros passarem
acendo um cigarro e vejo você do outro lado
indo na direção de um orelhão
andando seu andar que joga as mãos pra trás
falamos de um começo que pode ser
e é uma adivinhação pretérita:
então foi quando
coisas que nos contaremos tão diferentes
deixando os dedos sombrearem rente à carne
atravesso a rua e ando atrás de você
que ainda não me viu
e espero na cadeira do Café Alvorada
cabeça inclinada na meia luz onde aprendo a te ver

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Embarcação


Priscila Miraz. Vitória, ES, julho de 2008.

Para Pedro

hoje as águas da minha casa amanheceram vazantes
vindas da coifa da pia do banheiro
da talha de barro da cozinha
do registro da parede
limpas e abundantes
correndo pra algum mar
que se vê de um porto da Dinamarca
levantando do chão branco
o cheiro da poeira que traz o vento forte
de algum mar que se esconde
num buraco escaldante dessa areia
caminhando no sono tormentoso deitado nalguma ilha
era hóspede perplexa da casa alagada

domingo, 21 de dezembro de 2008

no meio do caminho


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Budapeste.


a esperança usa menos plumas
aos trinta anos
e toma remédios azuis, redondos e grandes
pra dor de cabeça

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Inquietude


Sergio Larrain (Chile, 1931). Paris, 1959.


a espera amordaçada debate
mãos e pés e tronco
não tira a mordaça
engole a própria saliva
e alimenta
pequenos afogamentos diários

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

À moda da casa


Man Ray (Estados Unidos, 1890-1976).


ainda estou aqui na companhia
da que joga cartas pela janela
e os pombos levam em vôos rasantes
elas caem nos telhados
enroscam em galhos desmancham na água
infiltram nas lajes e gotejam sal
ainda estou na companhia
da que bica os rebocos estufados das paredes
e lambe a areia doente do carcomido
grunhe aos passantes relincha um berro que arde
esconde o rosto na barra da saia molhada do trabalho
ainda estou aqui na companhia
da que lambe os joelhos ralados
pra sentir o gosto do ferro
e me acomodo no canto da cozinha
escuto o rangido da cadeira quando me mexo
escuto o chiar da chaleira que prepara a água
eu bebo a água suja
na companhia da que limpa a terra
que marca o meu rosto
com a palma da mão tão seca tão pobre de mapas
e durante as chuvas das noites
sou eu que durmo em rodilha aos pés da cama

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Pausa


Henri Cartier-Bresson (França, 1908- 2004). Sem título.




. . .

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Gumes


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Black and White Lilies, about 1925.


veio andando de longe com os olhos fitos em mim e achei mesmo que não iria parar, que iria me atropelar com óculos escuros, continuar a carreira desmedida na pressa, na urgência que ele tinha, e quando estacou eu devo ter soltado um suspiro, e com a mesma pressa ele me perguntou, e a tua ferida? sem a minha resposta tinha a minha boca aberta, sentia a ponta da faca entre os ossos da costela, onde esconde tua ferida? e o corpo dobrava sobre o meu, passava gente ao lado, passava gente escondendo, dobrando panos, calçando os pés, onde? eu segurei a faca pelo gume, pelo susto, pelo olho cego, pelo abandono sentido à mingua, segurei a resposta pelo gume, onde a tua ferida? sem os óculos, sem a presa, sem a carreira desmedida, onde esconde tua ferida? ele sentia a ponta da faca entre os ossos da costela.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sentenciada


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). Parco dei Mostri di Bomarzo, 1952.


à moda dos antigos castigos:
uma mancha de nascença
enorme mapa avermelhando desventura
carregado nas costas
estigma queimado no útero
mão indelével das tragédias
em cada sorriso o bafejo de Queres.

domingo, 26 de outubro de 2008

Gravura


Hildegard Rosenthal (Suíça, 1913- 1990). Lasar Segall, 1939-1941.


Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava. Pela persiana torta da janela entravam os sons e a força do calor da tarde modorrenta. Vivia onde os homens não têm rosto. Os abraçava pouco. Por uns trocados a mais abraçou o homem a pedido do estrangeiro. Era sempre o seu rosto de frente. Ele queria o seu rosto em preto e branco. Com todos os traços agudos. Zelita se explicitava. Os olhos olhando. O estrangeiro tirava o bloco do bolso da calça e rabiscava o abraço. Um vulto de costas. Uma nuca suava. Um corpo a mais no Mangue. Eles moviam os membros com lentidão. O ar pesava. O silêncio. Salvava os latidos dos cachorros. Um uivo. Uma briga. Ainda estavam no mundo. Depois passava. Os outros quartos murmuravam. As coisas que diziam escapavam. Os pensamentos da madrugada. O que devem pensar os mortos. Zelita pensava os mortos. O vulto do abraço enxugou o rosto num lenço amarrotado. De costas. Esquivou pela porta aberta. Devia se imaginar vivo. Mas Zelita ouvia o que pensava. Ajeitou as alças do vestido molhado de suor. Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Composição sobre a frase do filho


André Kertész (Budapeste, 1894-1985). Livro de Elisabeth.


quando escuto os seus pés
colando e soltando em estalidos
da madeira do chão
(soluços descalços)
quando abre a água do banho
sendo a chuva da casa no meio da tarde
forja o tempo preciso;
contrito
ultrapasso o trópico do corredor
chego ao canto da sala junto à mesa
estendo o corpo no mosaico dos seus coloridos
pequenos pedaços da imaterialidade que é você
secreto te componho e me aposso:
seu mundo faz festa comigo.


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Notas cotidianas


Horacio Coppola (Argentina, 1906). Buenos Aires, Frutería, 1936.


Anúncio de loja de mel, Buenos Aires:
“La lengua es la peor parte del cuerpo: adúlcela”

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Visão


Grete Stern (Alemanha, 1904-1999) El ojo eterno, hacia 1950.


criança vê com as mãos
solução das mãos pro desconfiado
cambaleante pelas imagens cotidianas
olhos-faringe esgotam
amparo os olhos com as palavras das mãos

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Assassinato


Bill Brandt (Alemanha, 1904-1983). Campden Hill, London, 1949.

depois de limpar os cantos da boca
no guardanapo de pano
matou
sem o aconchego da tristeza
(sua existência)
tinha à frente do corpo
a fria figura de um homem comum

sábado, 4 de outubro de 2008

Interior 9


Tina Modotti (Itália, 1896 - 1942). Madre e hijo, 1929.


Refugava transeunte a caminho. Perninhas encaixadas no quadril floral. Berrando feito bezerro desmamado. Coando o amargo com a voz de calmaria. A mãe. Reconhecida e gastada. Boi boi boi. Boi da cara preta. E o boi não pega a criancinha. Cortaram o pasto. Tem asfalto. O menino a cavalo leva os bois mais longe. Atravessa o canteiro da avenida nova. O fio fino continua. Boi boi boi. E o bezerro desmamado. O carro buzina. Céu de fim de tarde.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Adeus


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Phoenix Recumbert, 1968.
Conto publicado em A Garganta da Serpente.

E não é por não te querer mais. Só que a única coisa possível de te dar por algum tempo é esse rosto seco e duro que restou depois de metido no chuveiro e onde talvez tenha me permitido alguma lágrima. Não é por mérito ou por força ou por fraqueza. As medidas só existem como tentativas de definição e eu sempre busquei em você as sobras que não cabem, aquela última luz laranja do dia que por descuido a gente olha e não guarda e segue. Não é pelas mulheres. É por descaso das palavras e dos gestos, esa arquitectura de la nada, encendiendo sus lámparas a mitad del encuentro. Não é raiva. É decepção por saber que seja qual for a decisão que tome por você, será aceita sem uma palavra que me contradiga. E o que restar não passará de um desconforto, um incômodo, uma pequena pontada no seu estômago que os afazeres do dia farão esquecer e que por qualquer motivo sutil a memória trará em relâmpago, deixando o esforço por se lembrar dos restos perdidos. É por me recusar a ser a única doadora. É por não ser capaz de me recolher no teu abraço sem ter já a boca pronta pra dizer que vai embora. E não é por estupidez que as minhas esperas patéticas e inúteis ainda vão durar por algum tempo. Mas é por falta talvez, que você não esteja entendendo esse adeus.


Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Fechou o portão e não parou depois de trancá-lo para ver os passos que iam pelo asfalto cheio da garoa da madrugada. Tomara, tomara que não. O sinal gritava sempre um minuto antes, sempre roubava o minuto e isso era imperdoável. Logo depois o inspetor que acabara de soar o sinal já estava parado olhando pra cara de todos com um dos ombros encostado no batente da porta, com a lista das classes e os horários das aulas nas mãos conferindo quem estava, quem faltava, resmungando de mau humor e aumentando o dos outros que já não era pouco aquelas tantas da tarde. Era sempre aquilo e ainda o engolir do café frio no copo de plástico, atravessar o pátio pensando que podia ser melhor, que um dia vai ser melhor senão não vai dar, senão se perde, e o perder e ganhar ali era uma trama, um conluio do qual sempre se participava e do qual sempre se era externo. Boa tarde. Eles ouviram ou não. E aquilo era uma relação humana. Humanamente bruta. O caminho percorrido por anos com chuva com frio com muito calor com alguma esperança triste, la tristeza que tuvo tu valiente alegria. Uma valente alegria encerrada em envelope verde e jogada em frente àquela porta. Na última tarde antes das férias fez meia-volta no caminho da casa e buscou pra si uma rosa. Voltou A Moça com a Flor, de mãos envelhecidas com uma rapidez que foi capaz de assustar e constranger o amigo por dois anos distante. Assustar e constranger. Uma espécie de Ms. Delloway, editora da história. Complicadora da história. Entrando pelo portão voltou até a madrugada anterior e Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Tomara, tomara que não.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Declaração (trecho)


Cristiano Mascaro (Brasil, 1944). São Paulo.


Se ela estivesse ali, diria que sabia que agora ele abriria a cortina da cozinha, porque a chuva começou e com ela o escuro do dia. Que só assim abria a cortina da cozinha, quando vinha muita água. E era o fim do dia com muita água. Com as mãos apoiadas na pia gelada ficou olhando lá fora e pensando nela e no que ela diria. E sentia tanta raiva vindo de um jeito desacostumado nele que encheu o peito de ar e custou a soltar outra vez. Suja de respingos de café, amarfanhada das leituras a carta em cima da mesa. Um pedaço, um destroço que se materializava:

Eu sou pior. Pior que essa cara gelada que te deixei ver hoje. Muito pior. O que eu quero é egoísta. E você vê isso com muito mais clareza do que eu posso ter. O que disse é só um pouco do que tem guardado sobre mim. Deixou que eu soubesse só disso, com a cara escondida no escuro da sala, revirando os dedos pelo rosto. Viu como eu sei: é o que as tuas mãos calmas me diziam. E você se perde nisso que não tem nome, nesse espaço que é nosso. Que sim, temos um espaço. Estranho. Ele existe nisso que não entendo. A sua percepção é boa. Certeira. Você me passa a idéia de nunca se confundir. De sempre saber o que deve fazer. Mas isso não protege. Nunca. Veja, hoje você precisou de mim. Precisou que eu te desse a minha energia. Mas eu não dei. Porque estou comodamente recebendo de você. É isso que quero. Receber de você o meu alívio. Egoísta. Mas você não diz. Eu queria que você dissesse. Sabe. Aquele começo de arrepio que dá por dentro quando a gente sabe que vai ouvir uma coisa indesejada, uma coisa que vai nos deixar mal. É uma volúpia. Eu quero que você me diga que não gosta. Que aquilo pra você não diz nada. Você quer dizer agora, às vezes você diz indiretamente. E já sei que quando você disser vou fazer cara de quem tenta não se ofender. E vou sentir raiva. Vou congelar de novo. Sabe o que é? Hoje foi também. Cara de quem não gosta de ser contrariada. Ainda mais por você que está aí pra me fazer me sentir bem. Que não deve me dar incômodos. Egoísta. Esse será meu mote agora. Isso foi uma resposta? E eu direi que não. Que é por tanta coisa que não é você. E não estarei mentindo. Isso é assim. As coisas vieram com mais força antes de você. Mas você soube desviar. Infringiu as regras. Excitante como uma ameaça.


segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Interior 8


Paul Strand (EUA, 1890-1976). Katie Margaret MacKenzie.


Quando a menina era menina gostava que a mãe lhe dividisse os cabelos ao meio e fizesse um pequeno coque de cada lado da cabeça. Usava o vestido de xadrez miúdo, laranja e branco até os joelhos. A sandália era de couro marrom e ela queria que fossem sapatos brancos de fivela. Com o dinheiro enrolado na mão direita e as recomendações do pai pra prestar atenção na rua, não conversar com estranhos e voltar o mais rápido possível porque ameaçava chuva forte, a menina foi. O caminho cotidiano se mostrava pela primeira vez. Séria e compenetrada fez a compra em menos de quinze minutos, mesmo tendo esperado um pouco na fila da padaria do mercado. Iniciou a volta estampando a descompostura exultante da satisfação por ter feito tudo sozinha. Reolhou as coisas do caminho ainda mais uma vez outras. E sentiu a barriga gelar quando a pedra do jardim de uma casa andou. Diminuiu o passo e a respiração. Sem muita demora a memória das ilustrações dos cartões dos Chocolates Surpresa lhe acorreu no reconhecimento do enorme jabuti. Sem prestar muita atenção aos próprios movimentos, sentou-se na calçada em frente ao bicho, estendendo o saco pardo com os pães ao lado. Anos mais tarde não saberia dizer o que exatamente observou no animal. Provavelmente os detalhes dele. Deve ter achado que parecia um homem velho e triste. A lembrança voltaria nítida quando o jabuti já entrava outra vez no mato alto do jardim e a voz gritada do pai lhe alcançava ao mesmo tempo em que sua mão, que com um só puxão lhe pôs em pé. E ainda os grossos pingos da chuva. Outra vez a memória cede. Não recorda o que lhe foi gritado, mas o rosto vermelho do pai que grita lhe causa vertigem. Sabe que deve uma explicação. Sente raiva e um impulso tremendo de esconder dele o jabuti: queria alcançar a margarida branca. Foi de volta pra casa soluçando um soluço que doía a garganta. Enquanto a menina foi menina, voltou muitas vezes secreta até a casa do jabuti.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Preto no Branco (trecho)


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). El espiritú di Licabeto I, Atenas, 1937.


Queria fumar no degrau branco da cozinha. Ver a chuva afogando o mato do fundo da casa, estragando as rosas abertas. Mas não tinha cigarros. A fineza da sombrinha servia minha ausência. Foi com ela que saí pra baixo d’água. Achei a padaria ainda aberta. Eu não sorri pra moça do caixa naquela noite. Eu não vi a moça do caixa quando estendi a mão molhada e vi mais que senti as moedas do troco na palma. Queria voltar e sentar no degrau branco da cozinha. E fiz a volta longa. Não era costume, mas servia à minha ausência. Parei sob o toldo da barraca de caldo de cana fechada. Resolvi acender um cigarro ali. Só me dei conta das pernas das calças molhadas até os joelhos quando me apalpei procurando o isqueiro que não estava. Aliás, nem as chaves. Imaginei o chaveiro grande e brilhante se balançando do lado de fora da fechadura do portão branco. Como muitas vezes. A mão da prostituta tinha um isqueiro e acendeu o meu cigarro. Ela eu vi porque a minha ausência reconhecia o branco leite do esmalte dela. Ela fumou também. Olhou a chuva de frente e os meus pés em chinelos de esguelha. Eu também me olhava de esguelha e a chuva de frente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Café


Henri Cartier-Bresson (França, 1908- 2004). Martine Frank, Paris, 1975.


levantou os olhos de dentro da xícara carijó
enganchou de viés uma braveza nem sabida
trouxe o revés de direito
na boca vazante do pressentido
não pede nem deve
o consentimento pro uso do possessivo

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Trecho de conto


Eugène Atget (França, 1857-1925). Intérieu Avenue Montaigne: la cuisine, 1910.


Naquela manhã do dia 21 de junho abriu a janela da cozinha com descuido de coisa costumeira. A pequena janela de vidro sujíssimo que guardava alta a parede da cozinha. E aberta a janela e as narinas, inspirou fundo e trouxe o frio pra dentro do corpo em pequenas agulhas de cristal azulado, sapatinhos de pregos perfazendo o interior oco do corpo. Foi como se cócegas espasmassem a casca da velha protegida em coisa de lã. Sentiu doer repentinamente o canto esquerdo da boca, como se recebesse ferimento naquele instante, pra logo em seguida conferir que os latejos eram os mesmos de sempre. Só tinham despertado em atraso naquela manhã aurora.
Em outro lugar não poderia encontrar minha tia.
A voz do menino, mucosa. Procurou a tia por mais de uma semana. Reviu a cidade depois de anos. Ainda podia movimentar-se nela com a memória. E encontrou a casa com a tia metida dentro, azulando o ar com a respiração velha. Não respondia ao menino. Olhava detrás dos olhos parados nele.