Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Preto no Branco (trecho)


Herbert List (Alemanha, 1903-1975). El espiritú di Licabeto I, Atenas, 1937.


Queria fumar no degrau branco da cozinha. Ver a chuva afogando o mato do fundo da casa, estragando as rosas abertas. Mas não tinha cigarros. A fineza da sombrinha servia minha ausência. Foi com ela que saí pra baixo d’água. Achei a padaria ainda aberta. Eu não sorri pra moça do caixa naquela noite. Eu não vi a moça do caixa quando estendi a mão molhada e vi mais que senti as moedas do troco na palma. Queria voltar e sentar no degrau branco da cozinha. E fiz a volta longa. Não era costume, mas servia à minha ausência. Parei sob o toldo da barraca de caldo de cana fechada. Resolvi acender um cigarro ali. Só me dei conta das pernas das calças molhadas até os joelhos quando me apalpei procurando o isqueiro que não estava. Aliás, nem as chaves. Imaginei o chaveiro grande e brilhante se balançando do lado de fora da fechadura do portão branco. Como muitas vezes. A mão da prostituta tinha um isqueiro e acendeu o meu cigarro. Ela eu vi porque a minha ausência reconhecia o branco leite do esmalte dela. Ela fumou também. Olhou a chuva de frente e os meus pés em chinelos de esguelha. Eu também me olhava de esguelha e a chuva de frente.

2 comentários:

Lorde Velho disse...

... o que continua me espantando é que seus textos não contém peripécias, acontecimentos, nada incomum... apenas momentos cotidianos que ganham significado através da linguagem... e isso me parece tão vital, uma vez que somos tão bombardeados a todo momento por imagens, histórias, fatos, notícias, filmes, acontecimentos e mais acontecimentos... e é justamente dos detalhes pequenos que precisamos, pois foram eles que perderam o significado, tornando o simples viver tão vazio...
Você é uma pessoa vital...

priscila miraz disse...

bom saber que está sempre passando por aqui, rodrigo. muito obrigada.