Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sábado, 7 de junho de 2008

Interior 7: dos epítetos


Tomás Camarillo (Espanha,1879-1954). Poyos – Plaza.

Sofro do mal de ter gosto por lugares pequenos. Um gosto volátil. Ver as praças e vielas, as casas velhas e os quintais de cachorros modorrentos e estridentes, as feiras das sacolas desfiadas, os velhos do carteado e do dominó, as velhas das linhas coloridas, de crianças impertinentes e vergonhosas, as faltas e sobras dos adultos, o desequilíbrio, as árvores esquálidas e de fronda amarela de pequenas flores que me agarram no pulo da passagem. Vejo ser puxado do meu corpo um pequeno pedaço de melancolia destilada numa terrível inquietação. Nas capitais eu estou nos lugares enrodilhados. Separo e me segrego. Tenho minhas escalas de vivência. E o jogo de alternância entre elas é sempre arrebatado pelas sutilezas. Já aberto o portão de casa pra voltar da rua, escuto a Viúva do Italiano me chamando da esquina. Desce a rua com sacolas pesadas. Quer saber se eu quero manga. Foi até o parque municipal buscar das mangas pequenas que são as melhores. Entra na varanda e vamos colocando as frutas, que são pra mim e pro menino, no banco azul. E a mulher fala baixinho. Ela ri tranqüila e eu sou menina na rua. Os vizinhos são O Italiano, Os Filhos do Italiano, A Mulher do Italiano. O Gigante Violeiro, um negro enorme, sempre de chapéu de palha, que me põe medo quando tira as caixas de abelhas da vizinhança com as mãos e uma risada sem som: o rosto aberto num sorriso largo e calmo cercado de abelhas nervosas, visto debaixo pra cima, me paralisa. A Mulher do Colar, que depois descobrimos ser um colete pra coluna. A Bruxa Da Casa de Tábua, que joga urina do penico na rua. Pela Viúva do Italiano, soube que eu e minha irmã somos As Meninas do Dentista. Ela me conta dos bailes onde encontra os namorados e me surpreende. Aí também soube que eu cresci de alguma forma, também fora da casca, que agora sou a Viúva do Homem Vistoso, Mãe do Menino Loiro. Sou mais uma das mulheres que cria seu filho no feudo da rua. E que todo esse agregado descritivo próprio da nossa memória trovadoresca vai continuar.

7 comentários:

Unknown disse...

Simplesmente lindo...
Adorei,

priscila miraz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
priscila miraz disse...

obrigada andré!
é sempre muito bem vindo.
beijos.

Unknown disse...

Oi Pri! Meu irmão me indicou o seu blog dizendo "que vc estava escrevendo cada vez melhor"! Simplismente amei!!! Vc é uma artista!!! Um abraço bem carinhoso... Deborah Mendes

Nós e o Claudiomar disse...

Pri, como sempre vc arrasa, uma facilidade pra expor sua vivência em forma de poesia... estou tentando descrever aqui, como é ler você, mas não consigo, só sentindo pra saber... Lindo!!!

Anônimo disse...

Pri, como sempre vc arrasa, uma facilidade pra expor sua vivência em forma de poesia... estou tentando descrever aqui como é ler você, mas não consigo, só sentindo pra saber... Lindo!!!

Anônimo disse...

Um beijo dentro de um beco com chão de taco envernizado, mal iluminado por janelinha quadrada e alta encurtinada, alguns vasos de folhagens e caixas de sapato encapadas em prateleiras embutidas até o teto, guardando objetos de lá retirados somente uma ou duas esporádicas vezes ao ano.
Paredes vermelhas poderiam torná-lo aconchegante pra você?
---- Seu texto me relembrou assumir o gosto por interiores também pequenos. Em algumas partes da sua casa me curto assim.
Lembranças ao menino loiro, tão querido.