Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Dois dias na semana


Geraldo de Barros (Brasil, 1923 – 1998). Cemitério do Tatuapé.

Não existe presente na cidade com o rio.
É um suspenso aerado, pedra pomes.
É o frio de sob superfície, o peso da mão na garganta.
O ar que sabe mais de cupins que de pássaros e peixes.
Os pássaros são mais do chão que do ar
Os pássaros acomodados e cheios de piolhos
da praça cheia de árvores, da cidade com o rio.
A cidade hostil a mim e a minha vida,
Enfurnada em sua existência circunspecta.
Essa cidade fechada em seus habitantes
que são as pedras dos barrancos,
as subidas íngremes das suas ruas.

São pontilhados os detalhes da palavra falada,
A palavra-argila da cidade com rio,
que só se sabe com o rio quando o avista na margem:
Seca e dura a cidade com o rio
E o que eu faço aqui é o que penso enquanto pego no sono,
o sono sempre tumultuado nas noites que não dormem,
Nas noites cheias de cães,
de latidos de cães, de ganidos de cães,
que são os habitantes perpétuos da cidade com o rio.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Peça


Chema Madoz. Agujaagua.

Para Lívia, Manoela, Marília e Ricardo

hoje me enrosquei em rascunhos. cobri o corpo com os pequenos pedaços de papel, tiras desamassadas, desalinho de sílabas. abri um pouco mais os olhos e deitei sobre os ombros um lenço finíssimo. saí assim para o vento poluído da cidade, saí como quem sai do teatro. Talvez fosse pelos olhos mais abertos. talvez por seguir uma linha imaginária transparente e carregada de sons que sentia fulgurantes entre os dedos maleáveis das mãos. Não sei muita coisa. O pouco que sei é o que conto: que por muitos quarteirões andei só, coberta de palavras aderidas ao corpo, com um lenço finíssimo nos ombros e os olhos mais abertos, seguindo o fio fulgurante que ouvia entre os dedos, andando pelas ruas antigas agudas varridas, como quem acaba de sair do teatro.