Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

domingo, 26 de outubro de 2008

Gravura


Hildegard Rosenthal (Suíça, 1913- 1990). Lasar Segall, 1939-1941.


Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava. Pela persiana torta da janela entravam os sons e a força do calor da tarde modorrenta. Vivia onde os homens não têm rosto. Os abraçava pouco. Por uns trocados a mais abraçou o homem a pedido do estrangeiro. Era sempre o seu rosto de frente. Ele queria o seu rosto em preto e branco. Com todos os traços agudos. Zelita se explicitava. Os olhos olhando. O estrangeiro tirava o bloco do bolso da calça e rabiscava o abraço. Um vulto de costas. Uma nuca suava. Um corpo a mais no Mangue. Eles moviam os membros com lentidão. O ar pesava. O silêncio. Salvava os latidos dos cachorros. Um uivo. Uma briga. Ainda estavam no mundo. Depois passava. Os outros quartos murmuravam. As coisas que diziam escapavam. Os pensamentos da madrugada. O que devem pensar os mortos. Zelita pensava os mortos. O vulto do abraço enxugou o rosto num lenço amarrotado. De costas. Esquivou pela porta aberta. Devia se imaginar vivo. Mas Zelita ouvia o que pensava. Ajeitou as alças do vestido molhado de suor. Ao lado dela sentada, um gramofone tocando um disco chiado. Nervos de aço. Segurava a barra do vestido fechada apertada na mão sem circulação. O rosto penso declinava uso de músculos. Zelita guardava.

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