Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Adeus


Imogen Cunninghan (EUA, 1883-1976). Phoenix Recumbert, 1968.
Conto publicado em A Garganta da Serpente.

E não é por não te querer mais. Só que a única coisa possível de te dar por algum tempo é esse rosto seco e duro que restou depois de metido no chuveiro e onde talvez tenha me permitido alguma lágrima. Não é por mérito ou por força ou por fraqueza. As medidas só existem como tentativas de definição e eu sempre busquei em você as sobras que não cabem, aquela última luz laranja do dia que por descuido a gente olha e não guarda e segue. Não é pelas mulheres. É por descaso das palavras e dos gestos, esa arquitectura de la nada, encendiendo sus lámparas a mitad del encuentro. Não é raiva. É decepção por saber que seja qual for a decisão que tome por você, será aceita sem uma palavra que me contradiga. E o que restar não passará de um desconforto, um incômodo, uma pequena pontada no seu estômago que os afazeres do dia farão esquecer e que por qualquer motivo sutil a memória trará em relâmpago, deixando o esforço por se lembrar dos restos perdidos. É por me recusar a ser a única doadora. É por não ser capaz de me recolher no teu abraço sem ter já a boca pronta pra dizer que vai embora. E não é por estupidez que as minhas esperas patéticas e inúteis ainda vão durar por algum tempo. Mas é por falta talvez, que você não esteja entendendo esse adeus.


Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Fechou o portão e não parou depois de trancá-lo para ver os passos que iam pelo asfalto cheio da garoa da madrugada. Tomara, tomara que não. O sinal gritava sempre um minuto antes, sempre roubava o minuto e isso era imperdoável. Logo depois o inspetor que acabara de soar o sinal já estava parado olhando pra cara de todos com um dos ombros encostado no batente da porta, com a lista das classes e os horários das aulas nas mãos conferindo quem estava, quem faltava, resmungando de mau humor e aumentando o dos outros que já não era pouco aquelas tantas da tarde. Era sempre aquilo e ainda o engolir do café frio no copo de plástico, atravessar o pátio pensando que podia ser melhor, que um dia vai ser melhor senão não vai dar, senão se perde, e o perder e ganhar ali era uma trama, um conluio do qual sempre se participava e do qual sempre se era externo. Boa tarde. Eles ouviram ou não. E aquilo era uma relação humana. Humanamente bruta. O caminho percorrido por anos com chuva com frio com muito calor com alguma esperança triste, la tristeza que tuvo tu valiente alegria. Uma valente alegria encerrada em envelope verde e jogada em frente àquela porta. Na última tarde antes das férias fez meia-volta no caminho da casa e buscou pra si uma rosa. Voltou A Moça com a Flor, de mãos envelhecidas com uma rapidez que foi capaz de assustar e constranger o amigo por dois anos distante. Assustar e constranger. Uma espécie de Ms. Delloway, editora da história. Complicadora da história. Entrando pelo portão voltou até a madrugada anterior e Tomara que não, mas essa pode ter sido a última vez. Tomara, tomara que não.

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