Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Interior 8


Paul Strand (EUA, 1890-1976). Katie Margaret MacKenzie.


Quando a menina era menina gostava que a mãe lhe dividisse os cabelos ao meio e fizesse um pequeno coque de cada lado da cabeça. Usava o vestido de xadrez miúdo, laranja e branco até os joelhos. A sandália era de couro marrom e ela queria que fossem sapatos brancos de fivela. Com o dinheiro enrolado na mão direita e as recomendações do pai pra prestar atenção na rua, não conversar com estranhos e voltar o mais rápido possível porque ameaçava chuva forte, a menina foi. O caminho cotidiano se mostrava pela primeira vez. Séria e compenetrada fez a compra em menos de quinze minutos, mesmo tendo esperado um pouco na fila da padaria do mercado. Iniciou a volta estampando a descompostura exultante da satisfação por ter feito tudo sozinha. Reolhou as coisas do caminho ainda mais uma vez outras. E sentiu a barriga gelar quando a pedra do jardim de uma casa andou. Diminuiu o passo e a respiração. Sem muita demora a memória das ilustrações dos cartões dos Chocolates Surpresa lhe acorreu no reconhecimento do enorme jabuti. Sem prestar muita atenção aos próprios movimentos, sentou-se na calçada em frente ao bicho, estendendo o saco pardo com os pães ao lado. Anos mais tarde não saberia dizer o que exatamente observou no animal. Provavelmente os detalhes dele. Deve ter achado que parecia um homem velho e triste. A lembrança voltaria nítida quando o jabuti já entrava outra vez no mato alto do jardim e a voz gritada do pai lhe alcançava ao mesmo tempo em que sua mão, que com um só puxão lhe pôs em pé. E ainda os grossos pingos da chuva. Outra vez a memória cede. Não recorda o que lhe foi gritado, mas o rosto vermelho do pai que grita lhe causa vertigem. Sabe que deve uma explicação. Sente raiva e um impulso tremendo de esconder dele o jabuti: queria alcançar a margarida branca. Foi de volta pra casa soluçando um soluço que doía a garganta. Enquanto a menina foi menina, voltou muitas vezes secreta até a casa do jabuti.

5 comentários:

Anônimo disse...

Lembro quando conheci as fotos do Peter Strand e como fiquei fascinado e ainda sou pelo seu trabalho. Gostei do seu interior que cada vez vai aumentando, creio que daqui a pouco você já terá uma pequena novela memorialística-poética ou algo perto disso. Basta encontrar o novelo da linha, retrancar os pontos, afinar a voz de um narrador e seguir em frente e para dentro da memória que inventa e cria novas possibilidades sempre. Bom trabalho querida. Um beijo grande.

Anônimo disse...

Puxa troquei Paul por Peter. Na verdade Freud deve explicar o fato. Gostaria muito que ele fosse um xará distante. Beijo novamente.

Anônimo disse...

Puxa troquei Paul por Peter. Na verdade Freud deve explicar o fato. Gostaria muito que ele fosse um xará distante. Beijo novamente.

Unknown disse...

Eu amo os interiores! Me lembra algo que vivi e que não vivi! Me lembra Assis, mas me lembra também Irati.

priscila miraz disse...

que legal, má! acho que era essa a intenção dos interiores.