Descontínuo Reverso

Fotografia: Chema Madoz (Espanha, 1958).

domingo, 25 de maio de 2008

Cartões russos (trecho)

Foto: Horacio Coppola (Argentina, 1906). Calle Victoria esquina San José, 1936.

Uma cidade é sempre uma invenção tão pessoal quanto as vidas que comporta. Lembrava-se da cara que fez, de Carmen ouvindo a música do destino nas cartas ciganas, quando encontrou os versos de Tarkóvsk no emaranhado das cartas-cartões, lívida e corajosa. Duas linhas em caneta tinteiro, em letras similares ao que já havia visto talvez um dia quem sabe onde perdido no seu tempo que foi se prolongando.
Pediu a informação ao garçom. Sério e solícito, ele disse que não sabia dizer, mas iria ligar para o serviço de informações da cidade. Da mesa onde estava, através da grande janela de vidro fosco, cheia de cartazes e adesivos e cardápios (: El Rincón Del Cacique, Savarin Turismo compromiso por el servicio de calidad, Super Mila huevo frito ensalada 2,99, Fiesta Gaúcha, Hotel Europa a metros del obelisco, ponga línea celulares tajeta de 80, La Perla café-bar-minutas, Tango show Humberto 1º 489), pode observar o homem ao telefone. Voltou minutos depois com um pequeno papel: colectivo 28 + Maipú. Ainda gesticulando como quando ao telefone, com os olhos muito escuros mantidos baixos no papel, e com o movimentar interrompido e várias vezes brusco do bigode tão longo que lhe escondia a boca, disse que deveria descer na segunda parada, dobrar a esquerda logo no fim da mesma quadra. Poderia ver o prédio na esquina. Entregou o troco do café, agradeceu, mal ouviu os agradecimentos pela informação e voltou-se em direção à porta estreita do café, sempre vago, fugidio, sem paciência, cansado. No limite entre o toldo do café e o céu nublado, as pontas dos sapatos de pequenos saltos começavam a receber a fina garoa, que ia se espalhando e descendo pela superfície até fazer a volta do solado, e isso fez com que ela parasse.

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